Distinto-Obscuro e Claro-Confuso: O Demoníaco na forma dos Sonhos e Pesadelos - As Expressões Oníricas Apolíneas e Dionisíacas

 

Por que tememos o demoníaco? Ou, mais especificamente, por que tememos a forma do demoníaco? Em toda e qualquer representação destas formas, elas são manifestas pelo grotesco, pelo horrendo ou pelo monstruoso. Em tudo o que se exprime, o demoníaco se dá naquilo que povoa nossos pesadelos, pois aos sonhos ainda refletimos de forma clara algo que supostamente tem um ordenamento – uma ideia que reproduz a própria beleza da natureza do mundo ainda mais clarificado, contudo confusamente expresso para nós nos sonhos como matéria de luminosidade ampliada de um empírico e, por quê não?, do próprio empíreo olímpico, sendo o empírico tão somente reflexo do empíreo ideal excessivamente iluminado de nossos sonhos.

Pagan Gods de Raphael Drouart, 1922.

Quem reproduz quem? Serão os sonhos - belos, perfeitos, agradáveis e agridoces - formas “reais” de um mundo não manifesto, escondido do aparente? Ou somente uma idealidade psicológica que almejamos para além do campo sensível e que resguarda nossas aspirações e desejos elevados?

Deleuze cunha a terminologia distinto-obscuro, extraída a partir de G.W. Leibniz como uma dupla característica das Ideias sendo - ao contrário do que pensa René Descartes das Ideias serem claras e distintas, a qual Deleuze indicará que isso é uma caraterística da representação - distintas e obscuras enquanto virtuais, ou seja, não individuadas ainda, sendo Ideias diferenciadas entre si em seu aglomerado virtual no campo transcendental, tornando seu reconhecimento obscuro pelo tumultuar constante de movimento entre elas - como no exemplo de Leibniz do murmurar das ondas do mar, sendo cada onda distinta entre si, porém obscura sua distinção na infinidade confluente de ondas do próprio mar; e, por outro lado, as Ideias se tornam claro-confusas conforme se atualizam nas apercepções do sujeito, sendo claras para o reconhecimento mas, deste modo se tornando confusas por tais percepções serem derivadas do aparelho sensível.

O que seria esse distinto-obscuro correspondente ao claro-confuso? Retomemos aos célebres textos de Leibniz sobre o murmúrio do mar; aí também são possíveis duas interpretações. Ou dizemos que a apercepção do barulho de conjunto é clara, embora confusa (não-distinta), porque as pequenas percepções componentes não são elas mesmas claras, mas obscuras. Ou dizemos que as pequenas percepções são elas mesmas distintas e obscuras (não claras): distintas, porque apreendem relações diferenciais e singularidades; obscuras, por não serem ainda ‘distinguidas’, não serem ainda diferençadas – e essas singularidades, condensando-se, determinam, em relação com nosso corpo, um limiar de consciência com um limiar de diferençação. A partir do qual as pequenas percepções atualizam-se, mas atualizam-se numa apercepção que, por sua vez, é apenas clara e confusa: clara, porque distinguida ou diferençada, e confusa, porque clara (DELEUZE, 2018, p. 282).

Este é o caráter duplo que Deleuze chamará de apolíneo e de dionisíaco da Ideia, em referência a Nietzsche. “O distinto-obscuro é a embriaguez, o aturdimento propriamente filosófico ou a Ideia dionisíaca. [...] E talvez seja necessário Apolo, o pensador claro-confuso, para pensar as Ideias de Dionísio” (DELEUZE, 2018, p. 283).

Por um lado, um campo onírico dos sonhos, por outro lado, um outro campo onírico existe, o campo obscuro dos pesadelos, que esconde em si uma realidade desagradável, oculta de, quiçá, nossos desejos ainda mais profundos ou eludidos, mais negados e reclusos. Se tomamos o campo dos sonhos ideais pela forma de anjos sempre manifestos em beleza renascentista e de uma claridade ofuscante e racionalidade iluminista, o pesadelo, por outro lado, esconde – em seus buracos-negros de atemorização irracional e de obscurantismo formal - toda a irrealidade que a própria irrealidade do sonho ainda não é capaz de abarcar. Se o sonho ainda se limita a um modo de representação, reprodução ou analogia para com o empírico dado no empíreo, o pesadelo é a virtualidade do abismo, o não-saber profundo dos atavismos primordiais dos estados animalizados do homem anteriores à qualquer recognição.

O Pesadelo de Johann Heinrich Füssli, 1781.

O pesadelo, por mais que se remeta vez ou outra à forma, torna a forma aberrante, como um aborto antinatureza do que seria a forma ideal, pervertendo, assim, todo princípio de recognição. Se nosso sentimento habitual para com o pesadelo é o medo, é porque não conseguimos conduzir a forma pervertida do pesadelo a uma forma conhecida, somente muito depois, quando já despertos, racionalizando tal experiência, remetemos o absurdo a uma forma já conhecida por um impulso causal para que passe o sentimento de terror causado pelo pesadelo e nos tranquilizemos.

Nietzsche afirma que o ser humano, quando confrontado com algo que não entende, busca, como sentimento psicológico, sempre no princípio de causalidade a origem para o efeito que lhe acomete de forma que possa tranquilizar a mente para este algo que lhe escapa da compreensão. Ele tenta absorver no sistema de causa e efeito uma explicação para o medo que parte pela incapacidade da não recognição das faculdades quando deparada com certo evento que lhe assombra. 

O impulso causal é, portanto, condicionado e provocado pelo sentimento de medo. O ‘por que’ deve, se possível, fornecer não tanto sua causa por si mesma, mas antes uma espécie de causa – uma causa tranquilizadora, liberadora, que produza alívio. O fato de ser estabelecido como causa algo já conhecido, vivenciado, inscrito na recordação é a primeira consequência dessa necessidade. O novo, o não vivenciado, o estranho é excluído como causa. – Portanto, não se busca apenas um tipo de explicações como causa, mas um tipo seleto e privilegiado de explicações, aquelas com que foi eliminado da maneira mais rápida e mais frequente o sentimento do estranho, novo, não vivenciado – as experiências mais habituais (NIETZSCHE, 2017, p. 36).

Ilustração de Gustave Doré para o conto O Pequeno Polegar.

De certa maneira o medo como o confronto com o que lhe é novo, inusitado, incompreensível e inapreensível para o pensamento é este incomodo primordial que o pensamento se depara para a própria produção de seu movimento. Não precisa ser necessariamente o próprio medo ou o espanto, mas algo que force o pensamento a pensar. O Thauma reconhecido desde a antiguidade. Como Deleuze diz: “Há no mundo alguma coisa que força a pensar. Este algo é o objeto de um encontro fundamental e não de uma recognição. O que é encontrado pode ser Sócrates, o templo ou o demônio. Pode ser apreendido sob tonalidades afetivas diversas, admiração, amor, ódio, dor” (DELEUZE, 2018, p. 191-192). É o que tira o ser de sua comodidade, do estado de letargia e que o coloca a criar. 

É, portanto, a partir do princípio de recognição das faculdades que se destrói a diferença, como submetido a quatro elementos: a identidade, a oposição, a analogia e a semelhança. Estes que sempre se remetem ao mundo da representação e que a partir de seus desdobramentos sempre se conduzem ao princípio do Cogito cartesiano como representação do pensamento. O mundo da representação mata a diferença no seu interior por trazer uma imagem, essa que Deleuze chama de dogmática, ortodoxa ou moral (DELEUZE, 2018, p. 182). 

O Eu penso é o princípio mais geral da representação, isto é, a fonte destes elementos e a unidade de todas estas faculdades: eu concebo, eu julgo, eu imagino e me recordo, eu percebo - como os quatro ramos do Cogito. E, precisamente sobre estes ramos, é crucificada a diferença. Quádruplo cambão, em que só pode ser pensado como diferente o que é idêntico, semelhante, análogo e oposto; é sempre em relação a uma identidade concebida, a uma analogia julgada, a uma oposição imaginada, a uma similitude percebida que a diferença se torna objeto de representação (DELEUZE, 2018, p. 190).

Essa forma de imagem dogmática do pensamento se baseia no duplo ideal formador da Doxa, o bom senso e o senso comum, formalizando um pensamento baseado em proposições já conhecidas como seus pressupostos e que condicionam a uma predeterminação do pensamento segundo uma imagem de valor já estabelecido de conhecimento. Essa imagem se define pela boa vontade do pensador em sempre buscar a verdade acima de qualquer coisa, como seu pressuposto fundamental de guia para o pensamento. Pois a verdade em si ninguém pode negar como sendo o bem definitivo para o filósofo onde, desde a mais antiga tradição sempre se buscou isso. Assim “De acordo com essa imagem, o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, possui formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verdadeiro (DELEUZE, 2018, p. 182). 

Assim a imagem dogmática do pensamento leva o pensamento ao erro como categoria de falha, o que vem de percepções pautadas nessa imagem totalizante, em que há sempre um fundo pressuposto de certo e errado. Hegel dirá sobre o dogmatismo como pensamento baseado em respostas sempre remetidas a um valor universal dado como:

O dogmatismo - esse modo de pensar no saber e no estudo da filosofia - não é outra coisa senão a opinião de que o verdadeiro consiste numa proposição que é um resultado fixo, ou ainda, que é imediatamente conhecida. A questões como estas - Quando nasceu César? Que estádio era e quanto media? - deve-se dar uma resposta nítida. Do mesmo modo, é rigorosamente verdadeiro que no triângulo retângulo o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos. (HEGEL, 1992, p. 42).

Headcase full of Devils de Paul Rumsey

Em suma, o sagrado, o divino, se remete - pelo princípio da semelhança - à proximidade do humano, por isto lhe é mais agradável, mais cômodo – o ideal do divino se remete ao principio de recognição das formas à forma ideal. Por outro lado, o demoníaco perverte a forma, foge da forma, aborta a forma divina e se afasta quanto mais do que é dado racionalmente. O demoníaco é mais próximo de um estado pré-conceitual da forma, animalizado, de um atavismo a-subjetivo ou pré-individual, de singularidades fluidas, plásticas e moventes. Nesse estado pré-individual, as formas do pesadelo obtuso são captadas distintamente entre si, mas obscuramente – é possível distinguir diferentes formas absortas no meio do pesadelo entremeio o abismo de desconhecimento, mas não claramente o que e como elas são, portanto tal obscuridade confunde os sentidos do sujeito causando-lhe o medo característico do encontro com esse desconhecido.

Pintura de Francis Bacon, 1946.

O demoníaco, portanto, produz uma descomunicação das faculdades, violenta o pensamento em suas bases mais profundas. A loucura ou o delírio, a característica “esquizofrenia” xamânica. Nenhuma evocação, invocação ou conversação com o sobrenatural se sobressai a esse laço de insanidade pré-conceitual, de um estado atávico anterior ao humano, do animal no homem. Não é por acaso que a maior parte dos deuses e entidades anteriores a era da racionalização continha caracteres animalescos, ou mesmo que qualquer entidade divina exprimisse uma pulsão elementar denegada pelo homem a partir de um principio de civilidade: violência, sexualidade, magia, morte etc., elementos estes que sempre foram considerados metafísicos para o homem primitivo e que foram paulatinamente substituídos por considerações racionais filosóficas ou cientificas. O mito, como mito, exprime a origem bruta do ser humano, e sua relação de proximidade fundamental com o animal. 

Referências: 

DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. 1 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.

HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito: Parte 1. Tradução de Paulo Meneses e Colaboração de Karl-Heinz Efken. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1992.

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos.  Tradução de Paulo César de Souza. 1. Ed. São Paulo: Companhia de Bolso, 2017.


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