Distinto-Obscuro e Claro-Confuso: O Demoníaco na forma dos Sonhos e Pesadelos - As Expressões Oníricas Apolíneas e Dionisíacas
Por que tememos o demoníaco? Ou, mais especificamente, por que tememos a forma do demoníaco? Em toda e qualquer representação destas formas, elas são manifestas pelo grotesco, pelo horrendo ou pelo monstruoso. Em tudo o que se exprime, o demoníaco se dá naquilo que povoa nossos pesadelos, pois aos sonhos ainda refletimos de forma clara algo que supostamente tem um ordenamento – uma ideia que reproduz a própria beleza da natureza do mundo ainda mais clarificado, contudo confusamente expresso para nós nos sonhos como matéria de luminosidade ampliada de um empírico e, por quê não?, do próprio empíreo olímpico, sendo o empírico tão somente reflexo do empíreo ideal excessivamente iluminado de nossos sonhos.
Quem reproduz quem? Serão os
sonhos - belos, perfeitos, agradáveis e agridoces - formas “reais” de um mundo
não manifesto, escondido do aparente? Ou somente uma idealidade psicológica que
almejamos para além do campo sensível e que resguarda nossas aspirações e
desejos elevados?
Deleuze cunha a
terminologia distinto-obscuro, extraída a partir de G.W. Leibniz como uma dupla
característica das Ideias sendo - ao contrário do que pensa René Descartes das
Ideias serem claras e distintas, a qual Deleuze indicará que isso é uma
caraterística da representação - distintas e obscuras enquanto virtuais, ou
seja, não individuadas ainda, sendo Ideias diferenciadas entre si em seu aglomerado
virtual no campo transcendental, tornando seu reconhecimento obscuro pelo
tumultuar constante de movimento entre elas - como no exemplo de Leibniz do
murmurar das ondas do mar, sendo cada onda distinta entre si, porém obscura sua
distinção na infinidade confluente de ondas do próprio mar; e, por outro lado,
as Ideias se tornam claro-confusas conforme se atualizam nas apercepções do
sujeito, sendo claras para o reconhecimento mas, deste modo se tornando
confusas por tais percepções serem derivadas do aparelho sensível.
O que seria esse distinto-obscuro correspondente ao claro-confuso?
Retomemos aos célebres textos de Leibniz sobre o murmúrio do mar; aí também são
possíveis duas interpretações. Ou dizemos que a apercepção do barulho de
conjunto é clara, embora confusa (não-distinta), porque as pequenas percepções
componentes não são elas mesmas claras, mas obscuras. Ou dizemos que as
pequenas percepções são elas mesmas distintas e obscuras (não claras):
distintas, porque apreendem relações diferenciais e singularidades; obscuras,
por não serem ainda ‘distinguidas’, não serem ainda diferençadas – e essas
singularidades, condensando-se, determinam, em relação com nosso corpo, um
limiar de consciência com um limiar de diferençação. A partir do qual as
pequenas percepções atualizam-se, mas atualizam-se numa apercepção que, por sua
vez, é apenas clara e confusa: clara, porque distinguida ou diferençada, e
confusa, porque clara (DELEUZE, 2018, p. 282).
Este é o caráter duplo que Deleuze chamará de apolíneo e de dionisíaco da Ideia, em referência a Nietzsche. “O distinto-obscuro é a embriaguez, o aturdimento propriamente filosófico ou a Ideia dionisíaca. [...] E talvez seja necessário Apolo, o pensador claro-confuso, para pensar as Ideias de Dionísio” (DELEUZE, 2018, p. 283).
Por um lado, um campo onírico dos sonhos, por outro lado, um outro campo
onírico existe, o campo obscuro dos pesadelos, que esconde em si uma realidade
desagradável, oculta de, quiçá, nossos desejos ainda mais profundos ou
eludidos, mais negados e reclusos. Se tomamos o campo dos sonhos ideais pela
forma de anjos sempre manifestos em beleza renascentista e de uma claridade
ofuscante e racionalidade iluminista, o pesadelo, por outro lado, esconde – em
seus buracos-negros de atemorização irracional e de obscurantismo formal - toda
a irrealidade que a própria irrealidade do sonho ainda não é capaz de abarcar.
Se o sonho ainda se limita a um modo de representação, reprodução ou analogia
para com o empírico dado no empíreo, o pesadelo é a virtualidade do abismo, o
não-saber profundo dos atavismos primordiais dos estados animalizados do homem
anteriores à qualquer recognição.
O Pesadelo de Johann Heinrich Füssli, 1781.
O pesadelo, por mais que se remeta vez ou outra à forma, torna a forma
aberrante, como um aborto antinatureza do que seria a forma ideal, pervertendo,
assim, todo princípio de recognição. Se nosso sentimento habitual para com o
pesadelo é o medo, é porque não conseguimos conduzir a forma pervertida do
pesadelo a uma forma conhecida, somente muito depois, quando já despertos,
racionalizando tal experiência, remetemos o absurdo a uma forma já conhecida
por um impulso causal para que passe o sentimento de terror causado pelo
pesadelo e nos tranquilizemos.
Nietzsche afirma que o
ser humano, quando confrontado com algo que não entende, busca, como sentimento
psicológico, sempre no princípio de causalidade a origem para o efeito que lhe
acomete de forma que possa tranquilizar a mente para este algo que lhe escapa
da compreensão. Ele tenta absorver no sistema de causa e efeito uma explicação
para o medo que parte pela incapacidade da não recognição das faculdades quando
deparada com certo evento que lhe assombra.
O impulso causal é, portanto, condicionado e provocado pelo sentimento
de medo. O ‘por que’ deve, se possível, fornecer não tanto sua causa por si
mesma, mas antes uma espécie de causa – uma causa tranquilizadora,
liberadora, que produza alívio. O fato de ser estabelecido como causa algo já conhecido,
vivenciado, inscrito na recordação é a primeira consequência dessa necessidade.
O novo, o não vivenciado, o estranho é excluído como causa. – Portanto, não se
busca apenas um tipo de explicações como causa, mas um tipo seleto e privilegiado
de explicações, aquelas com que foi eliminado da maneira mais rápida e mais
frequente o sentimento do estranho, novo, não vivenciado – as experiências mais
habituais (NIETZSCHE, 2017, p. 36).
Ilustração de Gustave Doré
para o conto O Pequeno Polegar.
De certa maneira o medo
como o confronto com o que lhe é novo, inusitado, incompreensível e
inapreensível para o pensamento é este incomodo primordial que o pensamento se
depara para a própria produção de seu movimento. Não precisa ser
necessariamente o próprio medo ou o espanto, mas algo que force o pensamento a
pensar. O Thauma reconhecido desde a antiguidade. Como Deleuze diz: “Há no
mundo alguma coisa que força a pensar. Este algo é o objeto de um encontro
fundamental e não de uma recognição. O que é encontrado pode ser Sócrates, o
templo ou o demônio. Pode ser apreendido sob tonalidades afetivas diversas,
admiração, amor, ódio, dor” (DELEUZE, 2018, p. 191-192). É o que tira o ser de
sua comodidade, do estado de letargia e que o coloca a criar.
É, portanto, a partir do
princípio de recognição das faculdades que se destrói a diferença, como
submetido a quatro elementos: a identidade, a oposição, a analogia e a
semelhança. Estes que sempre se remetem ao mundo da representação e que a
partir de seus desdobramentos sempre se conduzem ao princípio do Cogito
cartesiano como representação do pensamento. O mundo da representação mata a
diferença no seu interior por trazer uma imagem, essa que Deleuze chama de
dogmática, ortodoxa ou moral (DELEUZE, 2018, p. 182).
O Eu penso é o princípio mais geral da representação, isto é, a fonte
destes elementos e a unidade de todas estas faculdades: eu concebo, eu julgo,
eu imagino e me recordo, eu percebo - como os quatro ramos do Cogito. E,
precisamente sobre estes ramos, é crucificada a diferença. Quádruplo cambão, em
que só pode ser pensado como diferente o que é idêntico, semelhante, análogo e
oposto; é sempre em relação a uma identidade concebida, a uma analogia julgada,
a uma oposição imaginada, a uma similitude percebida que a diferença se torna
objeto de representação (DELEUZE, 2018, p. 190).
Essa forma de imagem
dogmática do pensamento se baseia no duplo ideal formador da Doxa, o bom senso
e o senso comum, formalizando um pensamento baseado em proposições já
conhecidas como seus pressupostos e que condicionam a uma predeterminação do
pensamento segundo uma imagem de valor já estabelecido de conhecimento. Essa
imagem se define pela boa vontade do pensador em sempre buscar a verdade acima
de qualquer coisa, como seu pressuposto fundamental de guia para o pensamento.
Pois a verdade em si ninguém pode negar como sendo o bem definitivo para o
filósofo onde, desde a mais antiga tradição sempre se buscou isso. Assim “De
acordo com essa imagem, o pensamento está em afinidade com o verdadeiro, possui
formalmente o verdadeiro e quer materialmente o verdadeiro (DELEUZE, 2018, p.
182).
Assim a imagem dogmática
do pensamento leva o pensamento ao erro como categoria de falha, o que vem de
percepções pautadas nessa imagem totalizante, em que há sempre um fundo
pressuposto de certo e errado. Hegel dirá sobre o dogmatismo como pensamento
baseado em respostas sempre remetidas a um valor universal dado como:
O dogmatismo - esse modo de pensar no saber e no estudo da filosofia - não é outra coisa senão a opinião de que o verdadeiro consiste numa proposição que é um resultado fixo, ou ainda, que é imediatamente conhecida. A questões como estas - Quando nasceu César? Que estádio era e quanto media? - deve-se dar uma resposta nítida. Do mesmo modo, é rigorosamente verdadeiro que no triângulo retângulo o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos. (HEGEL, 1992, p. 42).
Headcase full of Devils de Paul Rumsey
Em suma, o sagrado, o
divino, se remete - pelo princípio da semelhança - à proximidade do humano, por
isto lhe é mais agradável, mais cômodo – o ideal do divino se remete ao
principio de recognição das formas à forma ideal. Por outro lado, o demoníaco
perverte a forma, foge da forma, aborta a forma divina e se afasta quanto mais
do que é dado racionalmente. O demoníaco é mais próximo de um estado
pré-conceitual da forma, animalizado, de um atavismo a-subjetivo ou
pré-individual, de singularidades fluidas, plásticas e moventes. Nesse estado
pré-individual, as formas do pesadelo obtuso são captadas distintamente entre
si, mas obscuramente – é possível distinguir diferentes formas absortas no meio
do pesadelo entremeio o abismo de desconhecimento, mas não claramente o que e
como elas são, portanto tal obscuridade confunde os sentidos do sujeito
causando-lhe o medo característico do encontro com esse desconhecido.
Pintura de Francis Bacon, 1946.
O demoníaco, portanto,
produz uma descomunicação das faculdades, violenta o pensamento em suas bases
mais profundas. A loucura ou o delírio, a característica “esquizofrenia”
xamânica. Nenhuma evocação, invocação ou conversação com o sobrenatural se
sobressai a esse laço de insanidade pré-conceitual, de um estado atávico
anterior ao humano, do animal no homem. Não é por acaso que a maior parte dos
deuses e entidades anteriores a era da racionalização continha caracteres
animalescos, ou mesmo que qualquer entidade divina exprimisse uma pulsão
elementar denegada pelo homem a partir de um principio de civilidade:
violência, sexualidade, magia, morte etc., elementos estes que sempre foram
considerados metafísicos para o homem primitivo e que foram paulatinamente
substituídos por considerações racionais filosóficas ou cientificas. O mito,
como mito, exprime a origem bruta do ser humano, e sua relação de proximidade
fundamental com o animal.
Referências:
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. 1 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.
HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito: Parte 1. Tradução de Paulo Meneses e Colaboração de Karl-Heinz Efken. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1992.
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. 1. Ed. São Paulo: Companhia de Bolso, 2017.
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