Estrutura Onto-Cosmológica do Tempo em Gilles Deleuze na Forma do Eterno Retorno como Extra-Ser

Resumo: Intenciona-se, neste trabalho, apresentar uma possível estrutura do tempo na filosofia de Gilles Deleuze pela sua leitura dos quatro paradoxos do tempo em Henri Bergson e da pirâmide dos destinos expressa por G.W. Leibniz em seu Ensaios de Teodiceia. Com isto em vista, objetiva-se confluir para uma forma compossível derivado de um duplo cone – referindo-se ao passado e futuro, o primeiro de Bergson e o segundo de Leibniz – de forma que se conecte como um campo transcendental unívoco do tempo na forma do conceito de Eterno Retorno, este que Deleuze retira de Friedrich Nietzsche. Neste aspecto, o Eterno Retorno se insere como forma transcendental para uma estrutura convoluta de séries de tempos disjuntos e mundos possíveis distintos. Tomando o Eterno Retorno como expressão do Ser Unívoco pela forma do próprio tempo, temos aqui em vista uma conjugação do Eterno Retorno do Mesmo de Nietzsche com o da Diferença de Deleuze. Em vista disso, busca-se explicitar o conceito de Destino pela visão do autor francês implicando a inserção de um quinto paradoxo do tempo como aquele reservado a uma ligação direta entre passado e futuro no princípio do movimento do retorno.

Palavras-chave: Deleuze; Tempo; Acontecimento; Eterno Retorno; Destino. 

Introdução

Tendo como princípio o tempo como grande confusão de séries e níveis, tomamos como objetivo traçar uma suposta estrutura que não se limita às percepções circular (O Eterno Retorno do Mesmo) ou linear (o tempo dissolvido de Kant) de modo a apresentar um campo labiríntico do tempo como expressão do Ser Unívoco pelo viés do conceito conjugado de Eterno Retorno em Nietzsche e Deleuze. Destrincha-se, assim, o que Deleuze concebe como o Destino - do movimento que, na circulação do retorno, faz passado e futuro complementares e retroalimentativos. Tomamos, com isso, o Eterno Retorno pela leitura de Deleuze como um ressoar da diferença no mesmo, pelos acontecimentos que lhe são inerentes. Uma estrutura cosmológica do tempo se abre como o grande labirinto dos contos de Borges, no qual Deleuze se inspira e que nos faz pensar um Ser Unívoco a partir das partes disjuntas, conflitantes e ao mesmo tempo complementares de um só e mesmo Ser. 

1.     O Acontecimento e as Formas Circular e Linear do Tempo

Kant concebe o tempo como forma interna da intuição e unificador da apercepção de si mesmo (KANT, 1994, p. 73, B 50). No entanto, este remete a um tempo unidimensional, onde tempos diferentes não se dão como simultâneos, mas sim como sucessivos (KANT, 1994, p. 71, B47). Deleuze, por outro lado, em inspiração bergsoniana, concebe o tempo de forma pluridimensional.

De tal modo, Kant percebe o tempo como uma linha reta infinita cujas partes formam uma única série unidimensional (KANT, 1994, p. 73, B50), a forma pura do tempo como tempo dissolvido. O tempo kantiano é, propriamente, o tempo do acontecimento. É nele, como momento atual, onde uma violência se opera no pensamento, provinda de uma experiência sensível que extraí uma diferença intensiva do tempo circular da Physis. O tempo circular da Physis, é a união das repetições do presente e do passado como dois arcos de um círculo que completa o processo de repetição do mesmo e do semelhante. Quando o tempo circular se desenrola na linha reta, ocorre o acontecimento. Nesta linha reta sem início e sem fim, distendida, de um lado infinitamente para o passado e para o outro infinitamente no futuro, o presente como ponto se dissolve na linha.

Em relação ao acontecimento, Deleuze dirá que este se dá em dois pontos: aquele do presente em que se efetua corporalmente no plano empírico do tempo propriamente físico e circular da Physis - este o tempo de Cronos; e o do presente que se dissolve em passado e futuro infinitivos, do tempo distendido na linha reta de Aion como acontecimento transcendental. Em suas palavras:

Em todo acontecimento existe realmente o momento presente da efetuação, aquele em que o acontecimento se encarna em um estado de coisas, um indivíduo, uma pessoa, aquele que designamos dizendo: eis aí, o momento chegou; e o futuro e o passado do acontecimento não se julgam senão em função deste presente definitivo, do ponto de vista daquele que o encarna. Mas há, de outro lado, o futuro e o passado do acontecimento tomado em si mesmo, que esquiva todo presente, porque ele é livre das limitações de um estado de coisas, sendo impessoal, pré-individual, neutro, nem geral, nem particular, eventum tantum...; ou melhor, que não há outro presente além daquele do instante móvel que o representa, sempre desdobrado em passado-futuro, formando o que é preciso chamar a contra-efetuação (DELEUZE, 2000, p. 154). 

O acontecimento é o presente que perdura, que desliza pelas dimensões de passado e futuro como sempre existente, sempre por vir e sempre por chegar. Coextensivo, em que a existência do momento singular abole totalmente a lógica do tempo como dimensional, momento fortuito este que ressoa por toda a eternidade como sempre presente. Aion, como passado-futuro que se subdividem indefinidamente. Nisso há a contra-efetuação do acontecimento que não se efetua nos corpos, mas que fica na margem, nas bordas do físico e do metafísico - pura expressão do sentido, mas não reservado ao campo da proposição, ou mesmo da efetuação corporal do problema na matéria, mas no limite próprio entre ambos, no véu entre a linguagem e o corporal, em que o expressionismo se concretiza, sobretudo, como criador de sentido.

Dessa maneira, o sentido, segundo Deleuze, é o acontecimento, enquanto não se reduz à proposição nem a sua efetuação nos estados de coisas, mas que volta uma face para a linguagem e outra para os corpos físicos, sendo assim a fronteira, um extra-ser (DELEUZE, 2000, p. 23), não existindo fora do atributo lógico da proposição que o exprime, nem da qualidade física que ele encarna, sendo puro transcendental como uma mistura de ambos, assim como no exemplo do verdejar da árvore – o qual trataremos mais adiante (DELEUZE, 2000, p. 22). O sentido como acontecimento é o verbo infinitivo que remete à univocidade do Ser, dobrando “sua conjugação em conformidade com as relações da designação, da manifestação e da significação – o conjunto dos tempos, das pessoas e dos modos” (DELEUZE, 2000, p. 190).

Seguindo a forma proposta para o tempo em Diferença e Repetição, a partir da linha reta da forma vazia do tempo, volta a se formar um círculo descentrado, simbolizando o eterno retorno na ponta desta linha reta, este o terceiro tempo da repetição – a primeira sendo a repetição física, a segunda a metafísica, e a terceira, a ontológica, correspondendo respectivamente às sínteses do passado, presente e futuro (PELBART, 2015, p.144) – O terceiro tempo, a terceira repetição, elimina as repetições precedentes que seleciona somente o que vai ser repetido eternamente no círculo que se forma na ponta da linha reta. Assim

Só há eterno retorno no terceiro tempo: é então que o plano imóvel se anima de novo ou que a linha reta do tempo, como que levada por seu próprio comprimento, reforma um anel estranho, que de modo algum se assemelha ao ciclo precedente, mas que desemboca no informal e só vale para o terceiro tempo e para o que lhe pertence (DELEUZE, 2018, p. 389). 

Num exercício de abstração quanto à sua imagem, o tempo de Diferença e Repetição se constitui - sob a forma em visão serial - à imagem do círculo da Physis se desenrolando numa linha reta e terminando em um círculo descentrado. Podemos ilustrar esquematicamente uma forma do tempo em Deleuze, referido ao que foi dito da seguinte maneira:

Figura 1: Forma serial do tempo segundo as 3 repetições.

Fonte: Criação do autor.

Sobre o processo de eliminação do eterno retorno seletivo, Deleuze diz que este é como um círculo dotado de força centrífuga onde faz do esquecimento força ativa, usando do desperdício daquilo que lhe é dispensável - ou seja, o negativo - onde o que é negado é a própria representação.

O eterno retorno serve-se da negação como nachfolge[1] e inventa uma nova fórmula da negação da negação: é negado, deve ser negado tudo o que pode ser negado. O gênio do eterno retorno não está na memória, mas no desperdício, no esquecimento tornado ativo. Tudo o que é negativo e tudo o que nega, todas estas afirmações médias que carregam o negativo, todos estes pálidos Sim mal vindos que saem do não, tudo o que não suporta a prova do eterno retorno, tudo isto deve ser negado. Se o eterno retorno é uma roda, é preciso ainda dotá-la de um movimento centrífugo violento que expulsa tudo o que ‘pode’ ser negado, o que não suporta a prova (DELEUZE, 2018, p. 85). 

O esquecimento se torna, portanto, instância ativa da faculdade da memória, em vias da vontade que somente coleta singularidades que se destacam como memórias, cuja intensidade condizem com o caráter do indivíduo a escolhê-las, no processo de uma terceira repetição, repetição que tem em vista criar, criar o que diverge das duas primeiras. Tais singularidades se destacam exatamente por serem diferentes das demais contidas no círculo - composto pelas repetições do presente e passado - conduzindo a uma criação indefinida, mesmo as tendo como campo pré-germinal em potência, para o futuro.

2.     Os Dois Cones, ou Futuro e Passado em Leibniz e Bergson

A partir de Leibniz, Deleuze em certo momento concebe o mundo deste como uma pirâmide ou um cone (DELEUZE, 1991, p.188), seguindo a ideia barroca da pirâmide dos destinos como exemplificada no diálogo do final da Teodiceia (LEIBNIZ, 2013, §413-417). Tal pirâmide apresenta o conjunto de todos os mundos possíveis em seus departamentos e, em seu vértice, como vértice do cone, se encontra o mundo atual, como o melhor mundo possível escolhido por Deus.

Segundo Deleuze,

Deus escolheu um mundo numa infinidade de mundos possíveis: os outros mundos têm igualmente sua atualidade em mônadas que os expressam: Adão não pecando ou Sextus não violando Lucrécia. Portanto, há um atual que constitui o real, devendo ser ele próprio realizado, e o problema da realização do mundo acrescenta-se ao de sua atualização. [...] O mundo é uma virtualidade[2] que se atualiza nas mônadas ou nas almas, mas é também uma possibilidade que deve realizar-se nas matérias ou nos corpos (DELEUZE, 1991, p. 158).

 O mundo como cone, liga a base “perdida nos vapores, a uma ponta, fonte luminosa ou ponto de vista” (DELEUZE, 1991, p. 188), sendo remetido à alegoria da pirâmide de Júpiter, cuja base se estende indefinidamente além da vista. Relacionando o caráter potencialmente criador da arte no contexto do mundo Barroco de Leibniz, Deleuze sobressalta o aspecto arquitetônico da pirâmide, sendo que

remete, de um lado, a uma base composta de personagens ou potências, verdadeiros elementos de bronze, que marcam menos os limites do que as direções de desenvolvimento; por outro lado, esse corpo remete à unidade superior, obelisco, custódia ou cortina de estuque, de onde desce o acontecimento que o afeta. Assim se repartem as forças derivativas embaixo e a força primitiva no alto (DELEUZE, 1991, p. 189).   

O Mundo, como Todo virtual, concebe-se como convergência e prolongamento de infinitas séries em torno de pontos notáveis, ou singularidades. (DELEUZE, 1991, p. 94). Cada mônada, ou indivíduo, expressa o conjunto do mundo, contudo, apenas uma parte do mundo. “Cada mônada, como unidade individual, inclui toda a série; assim, ela expressa o mundo inteiro, mas não o faz sem expressar mais claramente uma pequena região do mundo, um ‘departamento’, um bairro da cidade, uma sequência finita” (DELEUZE, 1991, p. 44). Os acontecimentos e as singularidades só se efetuam nos mundos que os tem como compossíveis, sendo que o mundo é prévio a estes, como no exemplo em que Deus cria o mundo em que Adão pecou, e não Adão pecador. Há, sobretudo, uma preexistência como constituição do sujeito do que Deleuze chamará de “predicados primitivos” como suas singularidades (DELEUZE, 1991, p. 99).[3] Partir do mundo para os acontecimentos se dá por emissão de singularidades, contudo tais singularidades estão em relação com pontos “ordinários” e “singulares”, de tal modo que “Pode-se dizer que tudo é relevante ou singular, uma vez que se pode levar a toda parte uma inflexão que erige um ponto singular” (DELEUZE, 1991, p. 95).

Tomemos a imagem da pirâmide como totalidade virtual do Mundo com infinitos cômodos. Cada cômodo um acontecimento num mundo possível. Os acontecimentos se efetuam no cruzamento entre uma série de singularidades com um mundo que os torna compossível. O vértice é o momento atual que toca o próprio presente, como efetuação do mundo que está se realizando. Todos os cômodos existem, são atuais em seus devidos mundos, mas não são reais, no sentido de se efetuarem materialmente. Somente um, no mundo possível que o eu individuado do presente se insere, pode se realizar. Contudo um não nega ou contradiz outro mundo possível, fazendo todos coexistir, serem contemporâneos, e cujas singularidades inerentes preexistem como predicados primitivos que se conjugam com o próprio mundo.

Esse esquema nos lembra muito de um outro, o de Bergson. Deleuze estrutura, assim, quatro paradoxos do tempo que retira de Bergson: o da contemporaneidade, como presente contemporâneo ao presente que já passou, dando a razão do presente que passa; o paradoxo da coexistência, que indica que ambos os presentes existem ao mesmo tempo, o atual e o presente que passou, como em-si e fundamento último da passagem do tempo; o paradoxo da preexistência, como passado puro imemorial, passado que preexiste à toda memória onde, nunca o presente atual é representado no passado puro, mas sim nos presentes sucessivos que passam; o quarto paradoxo do tempo, de que o presente atual, sempre sendo representado por um presente que passou, somente é possível pelo passado puro do terceiro paradoxo, o que viabiliza, como representação a priori do tempo, a representação em geral de um presente no outro. (DELEUZE, 2018, p. 120-121); Assim notamos a presença de tal noção na ideia do cone da memória em Bergson:

Figura 2: Cone da memória de Bergson

Fonte: (BERGSON, 1999, p. 190).

Deleuze esclarece a metáfora do cone de Bergson a partir da ideia de contrações, aplicando à síntese do passado como contrações da memória, onde o presente, tomado pelo primeiro paradoxo, se mostra como o estado mais contraído de instantes sucessivos na ordem cronológica do tempo e, no segundo paradoxo, ele designa o grau mais contraído de um passado completo que figura como uma totalidade que coexiste em si. Deste modo,

Será necessário, primeiramente, que esse passado inteiro coexista consigo mesmo, em graus diversos de descontração… e de contração. O presente só é o grau mais contraído do passado que com ele coexiste se o passado coexistir primeiramente consigo mesmo numa infinidade de graus diversos de descontração e de contração, numa infinidade de níveis (DELEUZE, 2018, p. 121). 

Bergson com seu cone constitui o campo virtual como memória, mas memória posterior, enquanto que o cone leibniziano, por outro lado, constitui o campo virtual como memória anterior. Dizemos do cone de Bergson como posterior, pois a ele concerne à memória, ou seja, àquilo que já se passou. A pirâmide, ou cone, de Leibniz, é o cone do futuro, daquilo que constituí virtualmente tudo o que potencialmente pode se atualizar.

3.     Estrutura do Tempo na Forma de um Duplo Cone como Campo Transcendental e o Paradoxo do Eterno Retorno

Numa abstração de uma imagem transcendental e incrementando o esquema bergsoniano do cone virtual com o da pirâmide de Leibniz, podemos considerar dois cones conectados, um de ponta cabeça sobre um em pé. O ponto de intersecção é o presente como instante de atualização do cone virtual, como germinativo potencial de se atualizar, em relação ao virtual já atualizado no presente e virtualmente armazenado na memória do tempo. Estabelecemos o seguinte esquema composto por dois campos virtuais conectados por um plano atual, como se segue:

Figura 3: Forma do tempo segundo a formulação do duplo cone como campo transcendental­­

Fonte: Criação do autor.

O Plano P indica a primeira repetição - material, física, empírica e atual - de modo que C2 indica a segunda - memorial, metafísica, transcendental e virtual. A ligação entre o cone C2 com o plano P incide no momento do acontecimento, este que eleva ao limiar transcendental da sensibilidade. O acontecimento é o princípio de um processo ontológico que desemboca na terceira repetição, de modo que o afunilamento do cone C2, como representação do cone da memória, se reporta a atualização destas memórias de acordo com o que põe o sujeito em ação no presente. É o momento fortuito do presente como estado de coisas corporais e empíricas como acontecimento que se volta para o pensamento e que atualiza uma memória que move o sujeito em vias de uma ação útil, operando uma seleção, a partir do campo completo de memórias virtuais, somente aquelas que se colocarem de forma ativa a criar - no plano do tempo presente - o futuro imediato e indeterminado (BERGSON, 1999, p. 163).

É no acontecimento que se ocorre a terceira repetição, como repetição apenas da diferença que leva o exercício memorial ao próprio imemorial da memória, perscrutando e selecionando no mais longínquo do cone às singularidades lá contidas a moverem o indivíduo a produzir o futuro. O cone C1 é a representação da pirâmide de Júpiter, contendo todos os mundos possíveis que podem decorrer do acontecimento a partir de uma ação, todos existindo virtualmente de forma simultânea como potencialidades. Cada ação que parte do acontecimento se ramifica em infinitas outras séries – tomamos aqui no sentido duplo da ontologia como da cosmologia – onde, de um lado se desenrola novas séries de repetições como processos ontológicos de individuação do sujeito. O acontecimento, por ele mesmo, é uma dupla individuação, individuando, por outro lado, uma fase do sujeito a partir de singularidades diferenciais intensivas coletadas do passado e presente no futuro, como uma individuação do próprio Ser do mundo, conectando essencialmente um ao outro.

O conceito que expressa adequadamente esta disjunção do tempo é o que Deleuze dirá de a imagem cristal, onde o tempo se cinde em dois jatos dissimétricos sendo que um vai, por um lado, para a totalidade virtual do tempo e o outro se desenrola para o futuro (DELEUZE, 1985, p. 102). O ponto do acontecimento é o momento da cisão, e pode-se dizer que o tempo futuro é sempre determinado por tal cisão. Cada momento que o tempo se disjunta de um lado para o outro, um futuro indeterminado se abre sempre completamente diferente do passado virtual. Contudo o momento da cisão torna os dois indiscerníveis, um e outro sendo diferentes ao mesmo tempo em que é impossível distinguir qual é qual.

O cristal, com efeito, não para de trocar as duas imagens distintas que o constituem, a imagem atual do presente que passa e a imagem virtual do passado que se conserva: distintas e no entanto indiscerníveis, e indiscerníveis justamente por serem distintas, já que não se sabe qual é uma e qual a outra. É a troca desigual, ou o ponto de indiscernibilidade, a imagem mútua. O cristal vive sempre no limite, ele próprio é ‘limite fugidio entre o passado imediato que já não é mais e o futuro imediato que ainda não é [...], espelho móvel que reflete sem descanso a perceção da lembrança.’ O que se vê no cristal é o pois um desdobramento que o próprio cristal não para de fazer girar sobre si, que ele impede de findar, já que é um perpétuo Se-distinguir, distinção se fazendo, que retoma sempre em si os termos distintos, para relançá-los de pronto (DELEUZE, 1985, p. 102-103).

O esquema da disjunção se mostra como na imagem a seguir: 

Cisão do tempo na imagem-cristal.

Fonte: (DELEUZE, 1985, p. 102).

No processo das três repetições ocorre uma seleção, na terceira repetição - das singularidades remetidas às duas primeiras repetições – ou seja, presente e passado, formando-se, na repetição do eterno retorno, um campo transcendental composto pelas singularidades coletadas e selecionadas. O argumento que se levanta aqui é que a base do cone superior (Bergson) que consiste na memória virtual do tempo, ao chegar ao fim da história do tempo - ou seja, o tempo das repetições no eterno retorno – este se prolonga na base do cone inferior (Leibniz), consistindo no campo virtual da totalidade infinita de mundos possíveis. Se há a preexistência como predicado primitivo de uma singularidade com o mundo, é somente por uma relação essencial de eterna ligação, de eterna extemporaneidade, que faz com que o passado seja produto de um tempo longínquo eternamente aí, e isso é tão somente possível por uma origem indeterminada em outro extremo.

Por um outro lado, o cone C1 se forma do que é coletado do acontecimento e se forma na base, constituindo, por sua vez, o campo pré-individual de uma nova série. Esse campo pré-individual tendo sua gênese no futuro aberto de uma série representa o passado imemorial do terceiro paradoxo do tempo, como paradoxo da preexistência de uma outra série. Se há um passado que não se alcança de modo algum à lembrança, é por ele consistir no conteúdo pré-individual, impessoal, germinal e como que, em termos leibnizianos, de predicados primitivos a formarem uma nova série que foram coletados de uma série anterior. A imagem esotérica que elencamos aqui é a da própria ampulheta, mas sob uma outra significação daquela que o tempo que corre, mas sim daquilo que existe em potência, passe a existir atualmente. O tempo não figura mais como uma corrida para a morte, mas sim como uma criação contínua. Desse modo, seguindo a alegoria da ampulheta, o passado que escorre para baixo, constituindo um novo campo transcendental, faz a ampulheta girar e novamente a areia tornar a escorrer, contudo não no ciclo eterno de uma mesma série, mas para cada ampulheta, em que infinitas outras se formam na ponta de conexão do cone memorial C2 com o presente, cada cone C1 indicando uma infinidade de outros cones que se ramificam a partir de um acontecimento.

Cada série se forma como uma coexistência dos tempos, do tempo imemorial que existe previamente e do tempo que se faz no presente, ambos implicando na criação do futuro como o tempo do futuro que se dá simultaneamente e contemporaneamente a um tempo de uma infinidade de novas séries. Requisita-se aqui um quinto paradoxo para dar conta dos quatro primeiros, o paradoxo propriamente resguardado ao futuro, em que se concebe uma criação do tempo passado de uma série no futuro de uma outra. De tal modo fazendo com que os quatro primeiros paradoxos - da coexistência, da contemporaneidade, da preexistência e o da representação do presente passado possibilitada pelo passado puro - sejam virtualmente, como se dizem, coexistentes, contemporâneos, preexistentes e que representem um passado em si mesmos a partir de uma concepção do tempo no próprio futuro. Os quatro paradoxos do tempo se unificam de modo diverso daquele que se remete ao passado pelo passado, mas se submetendo, assim, ao futuro, tendo este como seu produtor. O tempo vazio do futuro produz como imaculada concepção no passado. Este é o maior de todos os paradoxos do tempo. O paradoxo da pré-existência invoca, necessariamente, o paradoxo do eterno retorno, o paradoxo da concepção futura.

O intempestivo de Nietzsche é a fórmula do tempo que não se submete ao presente como de um tempo do agora, nem mesmo de um tempo do que já foi, como do passado, mas sempre e eternamente em vias do por vir, nunca aqui, pois não concerne a nós, mas à grande obra por se fazer. É no acontecimento como tempo vazio que se abre para o futuro, totalidade aberta para todos os casos indeterminados que se cria, e no passado que se conserva toda a criação do futuro. Mas o passado não contém a memória de um mesmo futuro. O futuro de uma série do tempo concerne a um outro ciclo, um outro tempo que não diz respeito ao ciclo precedente. É como se a memória do passado, por sua vez, conservasse em si, a história de diferenças de uma outra série, e nossa história se dá na disjunção de um outro tempo, a memória virtual de nossas vidas diz respeito à bifurcação de outras vidas. Mas, em si, todas essas vidas dizem respeito de uma só e mesma vida, de um mesmo destino como um único tempo, onde as séries se conjugam por disjunções inclusivas.[4] A vida presente sempre diz respeito a um outro mundo, não ao mundo possível que estou inserido, mas sempre um outro, de um outro tempo em que eu sou o criador. Mas todos os tempos que crio existem ao mesmo tempo, tanto em potência, como já existindo em outras séries de tempo, assim como tendo já sido feitos em outras circunstâncias.

4.     O Eterno Retorno como Acontecimento de Superfície e a Ressonância das Séries no Conceito de Destino

Podemos considerar a conexão dos cones como o jogo do anel da fita de Möbius, exemplificando a forma do tempo na imagem do eterno retorno, sempre retornando e incidindo na conexão de séries disjuntas que tornam a conjugar o futuro no passado como retorno diferençado[5], torcido e distorcido de uma série prévia numa outra série. O Anel de Möbius é uma construção formada pela colagem de duas pontas de uma fita que permanece contínua após dar-se meia volta na fita (SILVA, 2020). Ela é feita apenas de superfície significando aqui o acontecimento que se dá na superfície ou o eterno retorno como anel de superfície entre o transcendental e o material, a continuidade entre as séries do tempo como uma única coisa que retorna em si mesma e para si mesma, dobrando, de um lado, o futuro no passado e, de outro, fazendo o passado sempre existir ali eternamente em si mesmo. De outro modo, podemos considerar a mesma figura três, só que, no lugar da superfície plana representando o atual, com a fita de Möbius em seu lugar simbolizando o eterno retorno como a terceira repetição.

Figura 4: Fita de Möbius

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/geral-45659225

Dirá Deleuze a esse respeito referindo-se à obra de Lewis Caroll: 

O grande romance Silvia e Bruno conduz ao extremo a evolução que se esboçava em Alice, que se prolongava em Do outro lado do espelho. A conclusão admirável da primeira parte e pela gloria do Este, de onde vem tudo aquilo que é bom, ‘tanto a substância das coisas esperadas como a existência das coisas invisíveis’. Mesmo o barômetro não sobe nem desce, mas vai em frente, de lado e dá o tempo horizontal. Uma máquina de esticar aumenta até mesmo as canções. E a bolsa de Fortunatus, apresentada como anel de Moebius, é feita de lenços costurados in the wrong way, de tal forma que sua superfície exterior está em continuidade com sua superfície interna: ela envolve o mundo inteiro e faz com que o que está dentro esteja fora e o que está fora fique dentro. Em Silvia e Bruno a técnica da passagem do real para o sonho, e dos corpos para o incorporal, é multiplicada, completamente renovada, levada a sua perfeição. Mas é sempre contornando a superfície, a fronteira, que passamos do outro lado, pela virtude de um anel. A continuidade do avesso e do direito substitui todos os níveis de profundidade; e os efeitos e superfície em um só e mesmo Acontecimento, que vale para todos os acontecimentos, fazem elevar-se ao nível da linguagem todo o devir e seus paradoxos (DELEUZE, 2000, p. 11-12). 

Tomemos o ponto que é do outro lado do espelho que vem tudo o que é de bom, a substância das coisas esperadas e a existência das coisas invisíveis, ou seja, o virtual, de onde tudo se atualiza e se faz no mundo, se produz e se cria, não obstante, cuja superfície se alonga e envolve o mundo inteiro, sendo uma mesma virtualidade que engloba todos os acontecimentos como um único e mesmo Acontecimento para todos os acontecimentos, um único e mesmo Ser para o todo. Expressando-se na superfície e que se dá na efetuação da fronteira entre os corpos e a linguagem, mas que de fato, como virtualidade, é e somente consiste, como transcendentalidade, como Ideia, do que se encontra entre um e outro, na linha reta que torna a se dobrar sobre si mesma e se contorce sobre um círculo tortuoso e volta a formar o retorno das séries produzidas no futuro para o passado, eternamente se desdobrando, se entortando, se diferenciando e diferençando de si mesmo de um lado para o outro numa única e mesma superfície.

De tal modo, como na figura 3, como reflexo espelhado pelo atual do cone C2 no C1, vemos formar uma certa imagem disforme de uma pirâmide, representando a pirâmide dos destinos de Leibniz – ou como uma sombra que exprime o puro simulacro da forma virtual do cone C2. Consequentemente, como na citação de Deleuze referindo-se a Caroll e ao outro lado do espelho de Alice, o outro lado do espelho contém tudo o que é bom, pois é o melhor dos mundos possíveis atualizado, mas este não se reserva a um único mundo, mas a todas as infinitas “possibilidades” que se disjuntam e se abrem para as composições mais complexas e se congregam sendo sempre boas em si mesmas, independentes do resultado, numa positividade maior do destino.

Aqui elencamos a concepção de Deleuze do que seria o destino, como uma série de ressonâncias entre tempos, de modo que, em dados momentos de nossas vidas, em comunicação com uma certa singularidade, que está contida num tempo diferente do nosso, se relacionando por movimentos, transmissões de tempos que sempre estão em comunhão, sempre são, de todo modo, contemporâneos e coexistentes, sejam passados ou futuros relativos a nós mesmos. O que consiste nisso é o caso de acontecimentos que se relacionam com acontecimentos anteriores e que vem a se relacionar com acontecimentos futuros, como que “predestinados”, como que se já houvesse, na história dos tempos, uma “história escrita”. Mas não é isso, e sim que o tempo futuro já ocorreu, em um outro mundo, uma outra série, tal série não sendo, necessariamente a de uma outra vida, mas a de comunicação contínua de fases de nossas vidas, como memórias que se interconectam com elementos precisos entre um instante a outro específicos de nossas vidas, fazendo-nos crer que houvesse um destino, um eterno retorno idêntico de toda a existência.

É o que se chama destino. O destino não consiste em relações de determinismo, que se estabelecem pouco a pouco, entre presentes que se sucedem conforme a ordem de um tempo representado. Entre os presentes sucessivos, ele implica ligações não localizáveis, ações à distância, sistemas de retomada, de ressonância e de ecos, de acasos objetivos, de sinais e signos, de papéis que transcendem as situações espaciais e as sucessões temporais. Dos presentes que se sucedem e exprimem um destino, dir-se-ia que eles vivem sempre a mesma coisa, a mesma história, apenas com uma diferença de nível: aqui mais ou menos descontraído, ali mais ou menos contraído. Eis por que o destino se concilia tão mal com o determinismo, mas tão bem com a liberdade: a liberdade é de escolher o nível (DELEUZE, 2018, p. 122).[6] 

Se o destino não se concilia com o determinismo é por sermos livres para criar a partir dos níveis de ligação e dar vida a novos mundos, mundos que não se submetem à lógica dos possíveis, pois o possível é determinista, mas ao virtual, pois este abre caminho para a completa liberdade de criação a partir de indeterminações indefinidas no sistema aberto do futuro. Assim, de todo modo, uma virtualidade não nega uma outra, podendo esta permanecer em potencial germinativo no Ser, ou mesmo se atualizar de um outro momento fortuito na série do tempo, ou mesmo ser atualizada como uma criação, ou ser atualizada no próprio pensamento como uma Ideia problemática ou conceito.

O destino, portanto, é a memória do mundo, como uma memória pré-individual de cada um, que contém virtualmente todas as potencialidades germinativas, em um eterno processo de individuação, devindo a todo momento. Memória virtual pré-individual em potencial de se atualizar no futuro, e memória virtual individuada atualizada no passado. A ontologia temporal deleuziana é uma ontologia onde a ordem do tempo é invertida. A lógica cronológica do Ser se dá pelo futuro e desemboca no passado. É por isso que Deleuze afirma que Diferença e Repetição é uma obra apocalíptica, pois ela concerne ao futuro, e tão somente ao futuro (DELEUZE, 2018, p. 15).

5.     A Forma Labiríntica do Tempo e a Conjugação das Séries em uma Mesma Estrutura

Tendo em vista os pontos tratados até aqui, é por isso que Deleuze invoca no início de Diferença e Repetição que um livro de filosofia deve ser uma espécie de ficção científica (DELEUZE, 2018, p. 14). Elencamos aqui o mundo dos casos de solução impossíveis nos dados do melhor mundo calculado pela lógica de Deus. Se consideramos uma ordem do tempo em que o passado de duas ou mais séries se inicia – e não obstante, permanece conectado - pelo futuro aberto de uma série, concebemos aqui uma rede do tempo, uma teia sem início ou fim, o próprio rizoma. O tempo se torna convoluto, como um labirinto que embaralha todas as séries, compossibilitando os mundos em uma simultaneidade que fará Deleuze evocar o labirinto de Borges sob a forma do eterno retorno:

Assim, há sobre a linha reta um eterno retorno como o mais terrível labirinto de que falava Borges, muito diferente do retorno circular ou monocentrado de Cronos: eterno retorno que não é mais o dos indivíduos, das pessoas e dos mundos, mas dos acontecimentos puros que o instante deslocado sobre a linha não cessa de dividir em já passados e ainda por vir (DELEUZE, 2000, p. 182). 

Se podemos dizer que uma série do tempo começa no futuro de uma outra, não podemos assinalar - propriamente na conexão contínua de todas as séries - um ponto de origem, sendo que o tempo, na conjugação de níveis diversos de séries temporais, sempre começa pelo meio de uma delas. Como dirão Deleuze e Guattari: “Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 48). Borges torna seu labirinto conflituoso e convoluto como a forma do tempo pelo conto O Jardim de Caminhos que se Bifurcam, onde es­­tabelece esse paralelo como se segue:

O jardim de caminhos que se bifurcam é uma enorme charada, ou parábola, cujo tema é o tempo; essa causa recôndita proíbe-lhe a menção desse nome. Omitir sempre uma palavra, recorrer a metáforas ineptas e a perífrases evidentes é quiçá o modo mais enfático de indicá-la. É o modo tortuoso que preferiu, em cada um dos meandros de seu infatigável romance, o oblíquo Ts’ui Pen. Confrontei centenas de manuscritos, corrigi erros que a negligência dos copistas introduziu, conjecturei o plano desse caos, restabeleci, acreditei restabelecer, a ordem primordial, traduzi a obra toda: consta-me que não usa uma só vez a palavra tempo. A explicação é obvia: O jardim de caminhos que se bifurcam é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como concebia Ts’ui Pen. Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproxima, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram abrange todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; nalguns existe o senhor e não eu. Noutros, eu, não o senhor; noutros, os dois. Neste, que um acaso favorável me surpreende, o senhor chegou à minha casa; noutro, o senhor, ao atravessar o jardim, encontrou-me morto; noutro, digo estas mesmas palavras, mas sou um erro, um fantasma (BORGES, 1975, p. 102-103). 

Tomamos, não mais a imagem mítica tradicional do ouroboros – a serpente que morde a própria cauda – que representa o retorno do mesmo, mas como um eterno retorno que faz circundar o mesmo e o diferente, o deslocamento serial nos corredores problemáticos do labirinto. Uma nova forma de eterno retorno que é já anunciada por Deleuze silenciosamente em sua obra pelos meandros de sua interpretação do conceito nietzschiano como um retorno do Uno na circulação contínua do mesmo no diferente em si mesmo.

O tempo labiríntico se reflete no Ser, pois o Ser se reflete no tempo. Assim, as seções deste são como fases do Ser e como níveis de contração do cone memorial do tempo, referindo à alegoria deleuziana do destino, de modo que, o caminho percorrido pelo labirinto se faz pela conexão dos níveis de seus corredores, como correlatos dos níveis de contração de memórias que se dilatam e se contraem, fazendo com que se atualizem conforme se conectam, formando o traçado a ser percorrido pelo sujeito na problemática do tempo em que se insere o Ser. Não obstante, o labirinto não possuí um único caminho determinado de saída, concernindo ao sujeito criar suas próprias ligações e corredores conforme opera as ressonâncias de níveis e fases, cada vez individuando-se conforme se sai de uma das encruzilhadas deste. Assim, o labirinto não é, de maneira nenhuma, uma forma predeterminada do tempo, cabendo à criação indeterminada. O labirinto é o próprio eterno retorno, como forma que circunda e, ao mesmo tempo, conecta todas as séries do tempo, sendo que suas linhas exprimem, cada qual, uma série distinta do tempo que se interligam todas numa mesma rede infindável que se expande cada vez mais longe sem um fim ou um começo determinável.

6.     A Estrutura do Tempo no Eterno Retorno como Forma Absurda e a Univocidade do Mesmo e do Diferente

Um dos paradoxos que Deleuze nos traz se referindo a Meinong é o dos objetos impossíveis. Voltando ao contexto da forma do tempo expresso pelo eterno retorno, ele se constitui como um não-senso sendo a formulação de uma estrutura contraditória de formas geométricas que se contrapõem (o círculo, a linha reta, o labirinto) não tendo significação, mas que, não obstante, possuem pleno sentido como Ser unívoco. Dessa maneira a forma visual do tempo é um extra-ser, o eterno retorno sendo um não-senso pois é uma forma absurda que se diz, tanto do espaço como do tempo, tanto da ontologia como da ética, tanto da cosmologia como da estética, mas que não é definido pelos conceitos que o forma e sim, como palavra, Eterno Retorno, cujo sentido é o de algo que retorna eternamente, diz seu próprio sentido e doa o sentido dos elementos que o compõem. 

Paradoxo do absurdo ou dos objetos impossíveis. Deste paradoxo decorre ainda um outro: as proposições que designam objetos contraditórios têm um sentido. Sua designação, entretanto, não pode em caso algum ser efetuada; e elas não tem significação, a qual definiria o gênero de possibilidade de uma tal efetuação. Elas são sem significação, isto é, absurdas. Nem por isso deixam de ter um sentido e as duas noções de absurdo e de não-senso não devem ser confundidas. É que os objetos impossíveis – quadrado redondo, matéria inextensa, perpetuum mobile, montanha sem vale etc. – são objetos ‘sem pátria’, no exterior do ser, mas que têm uma posição precisa e distinta no exterior: eles são ‘extra-ser’, puros acontecimentos ideais inefetuáveis em um estado de coisas (DELEUZE, 2000, p. 37-38). 

Sobre a formação do objeto impossível, ele se relaciona com a disjunção inclusiva do ser como abertura para, tanto em sua estrutura cosmológica como em sua perspectiva ontológica, constituir a síntese entre elementos, a princípio considerados completamente opostos, elencando a potencialização para a pura criação de novos mundos, novas formas e individualidades múltiplas. 

são sínteses de termos contraditórios ou incompossíveis, sínteses disjuntivas inclusivas. Uma figura possível ou real obedece à lei de disjunção exclusiva: ela é ou um círculo ou um quadrado. Mas o objeto impossível incluí nele a disjunção, é ao mesmo tempo círculo e quadrado (LAPOUJADE, 2017, p. 125). 

Se o tempo possuí um processo de repetição, como ciclo, é como o eterno retorno do mesmo que se diz da diferença. Há, de fato, um eterno retorno do mesmo no eterno retorno da diferença deleuziano, mas esse retorno do mesmo corresponde a fazer retornar as diferenças - como um motor imóvel no sentido mais aristotélico do termo – nos retornos interiores a si como um sistema estruturado, contínuo e eternamente.

Sobre a univocidade do Ser, Deleuze dirá que “Para que o unívoco se tornasse objeto de afirmação pura, faltava ao espinosismo apenas fazer com que a substância girasse em torno dos modos, isto é, realizar a univocidade como repetição no eterno retorno” (DELEUZE, 2018, p. 397). Assim, sendo a unidade ontológica de sua filosofia, Deleuze considera sobre o eterno retorno o seguinte: 

Sob todos esses aspectos, o eterno retorno é a univocidade do ser, a realização efetiva da univocidade. No eterno retorno, o ser unívoco não é somente pensado, nem mesmo somente afirmado, mas efetivamente realizado. O Ser se diz num mesmo sentido, mas este sentido é o do eterno retorno, como retorno ou repetição daquilo de que ele se diz. A roda do eterno retorno é, ao mesmo tempo, produção da repetição a partir da diferença e seleção da diferença a partir da repetição (DELEUZE, 2018, p. 69).

 Ressaltamos o aspecto final da citação em que se diz que a repetição é produzida a partir da diferença, ou seja, volta a operar-se ciclos contínuos seriais de repetições a partir das extrações de diferenças a cada vez; e seleção de diferenças a partir do processo de repetições, como coletagem de singularidades intensivas dos ciclos de repetições seriais prévios.

Não vemos, portanto, contradição alguma entre os termos nietzschiano do eterno retorno do mesmo e o deleuziano do eterno retorno da diferença. Se pode ser feito um uso inclusivo e positivo da síntese disjuntiva, a própria síntese entre o eterno retorno do mesmo com o eterno retorno da diferença é esse uso inclusivo. Tal forma torna compossível o mesmo e o diferente, não mais como predicados analíticos que definem a relação do eterno retorno com o mundo, mas como predicados sintéticos que fazem do eterno retorno o termo vago e indeterminado que se põe como objeto = x deslocado entre as séries[7], como signo ambíguo que se porta como caso de solução possível aos vários mundos que se abrem (DELEUZE, 2000, p. 118). Daí que o eterno retorno toma a forma do próprio acontecimento, um extra-ser, como no exemplo que Deleuze dá do verdejar da árvore:

O atributo da proposição é o predicado, por exemplo, um predicado qualitativo como verde. Ele se atribui ao sujeito da proposição. Mas ao atributo da coisa é o verbo verdejar, por exemplo, ou antes, o acontecimento expresso por este verbo; e ele se atribui à coisa designada pelo sujeito ou ao estado de coisas designado pela proposição em seu conjunto. Inversamente, este atributo lógico, por sua vez, não se confunde de forma alguma com o estado de coisas físico, nem com uma qualidade ou relação deste estado. O atributo não é um ser e não qualifica um ser; é um extra-ser. Verde designa uma qualidade, uma mistura de coisas, uma mistura de árvore e de ar em que uma clorofila coexiste com todas as partes da folha. Verdejar, ao contrário, não é uma qualidade na coisa, mas um atributo que se diz da coisa e que não existe fora da proposição que o exprime designando a coisa (DELEUZE, 2000, p. 22). 

O predicado qualitativo do eterno retorno é a palavra “retorno”, mas o que se expressa como extra-ser, como acontecimento que exprime a própria proposição e que não existe fora dela é o atributo de “retornar”, o próprio movimento de repetição da filosofia de Deleuze. Se para Deleuze, “a árvore verdeja” é o sentido da cor da árvore e “a árvore arvorifica” é seu sentido global como acontecimento puro da própria árvore (DELEUZE, 2000, p. 22), eternamente retornar é o sentido expresso como acontecimento do mesmo e da diferença, estes que se dizem de uma coisa só, do unívoco, como Ser do todo. Não há incompossibilidade entre “mesmo” e “diferença”, pois os dois predicados se dão como formas diferentes de casos de solução a problemas em mundos possíveis diferentes.

Conclusão

Referencialmente ao que foi apresentado até aqui, tomamos o Eterno Retorno, em sua forma conjugada do mesmo e do diferente, como a expressão adequada para a Univocidade do Ser em Deleuze. Pois mesmo as séries mais divergentes de tempo o que, numa visão da lógica de Leibniz apareceriam como incompossíveis, se dão como partes de um mesmo tempo como expressão do Ser. O tempo se institui como a expressão sempre distinta e conflitante consigo mesmo de um único e mesmo tempo. Seja em sua manifestação estética como compossibilidade entre os incompossíveis no modo de uma criação, seja no próprio tempo tomado ontologicamente, o Ser se diz um para o todo, mas um com suas diferenças, assim como as diferenças das séries, conjugadas num único tempo como conceito transcendental da totalidade. Totalidade não tomada em sentido que excluí o que lhe consigna, mas como inclusão virtual do passado e futuro como um tempo que se faz de ambos em conformidade. É o futuro aberto e incerto que predispõe o terreno para a criação do passado no futuro e, retroativamente, do futuro para um novo passado que se instaura a partir desta criação. De fato, é somente o futuro que guarda o potencial para se criar o diferente de acordo com o já feito, e é nele que se instaura uma ontologia – tanto como uma cosmologia – do próprio diferente, mesmo que este retorne ao passado, mas sempre um retorno diferençado e diferenciado de si mesmo.

 

Referências: 

BERGSON, Henri. Matéria e Memória: Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução de Paulo Neves. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

BORGES, Jorge Luís. Ficções. Tradução de Carlos Nejar. 2 ed. São Paulo: Círculo do Livro S.A, 1975.

DELEUZE, Gilles. A Dobra: Leibniz e o Barroco. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. 4. ed. Campinas: Papirus, 1991.

_______________. A Imagem-Tempo: Cinema 2. Tradução de Eloisa de Araujo Ribeiro. 4 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

______________. Diferença e Repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. 1 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.

______________. Lógica do Sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. 4 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.

DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Felix. Mill Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia Vol. 1. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2011.

______________. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia Vol. 4. Tradução de Suely Rolnik. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2012.

______________. O Anti-Édipo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. 1 ed. São Paulo: Editora 34, 2010.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 3. ed. Lisboa; Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.

LAPOUJADE, David. Deleuze, os Movimentos Aberrantes. Tradução de Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1 edições, 2017.

LEIBNIZ, G.W. Ensaios de Teodiceia. Tradução de William de Siqueira Piauí e Juliana Cecci Silva. 1. ed. São Paulo; Estação Liberdade, 2013.

PELBART, Peter Pál. O Tempo Não-Reconciliado: Imagens de Tempo em Deleuze. São Paulo: Perspectiva, 1998.

SILVA, Adelino. A Fita de Möbius: Breve Abordagem Filosófica. Matemática para Filósofos, 2020. Disponível em: <https://www.matematicaparafilosofos.pt/a-fita-de-mobius-breve-abordagem-filosofica/>. Acesso em: 24 de outubro de 2022.




[1] Sucessor, em Alemão.


[2] A virtualidade diz respeito à existência transcendental pré-formativa das Ideias, como conceitos enquanto tais ou como indivíduos expressos nas mônadas, existindo em um campo transcendental anterior a sua efetuação no mundo. Não obstante, devemos salientar um ponto fundamental: sua existência como virtual, tanto das ideias quanto dos sujeitos enquanto virtuais, possuem uma consistência de realidade concreta, sua única diferença é quanto ao elemento de atualização própria, ou seja, sua efetivação no mundo. “O virtual não se opõe ao real, mas apenas ao atual. O virtual possui uma plena realidade como virtual” (DELEUZE, 2018, p. 276). Deleuze ainda elenca a importância da diferença entre o virtual e o possível, sendo que o possível se dá tão somente como uma reprodução de semelhança do real segundo uma imagem representativa do que já está ali. O virtual, por outro lado, é pura criação indeterminada, referente às singularidades que constituem um campo problemático (do sujeito ou da Ideia), referente à sua efetuação no mundo segundo uma indeterminação completa, nunca podendo ser possível prever o que há de se efetuar de fato. Já o possível se dá segundo casos, de fato, previstos como possibilidades latentes limitadas que preexistem a uma imagem potencial estabelecida (DELEUZE, 2018, p. 280).

 

[3] Deleuze, a partir da lógica leibniziana, indica que as singularidades devem estar contidas no mundo possível que elas englobam, como no exemplo de Adão, onde se constata que Deus criou o mundo em que Adão pecou, não Adão pecador, pois Adão pecador expressa o mundo do qual é compossível o pecado de Adão, o qual deve ser expresso igualmente por todas as mônadas individuais que compõem o mundo em que está inserido. Segundo este raciocínio, um mundo em que Adão pecou excluiria um Adão não-pecador, havendo a necessidade de outro mundo para que este lhe seja compossível (DELEUZE, 1991, p. 45). Segundo Deleuze, esse é o procedimento de vice-dicção e não implica contradição entre os mundos, mas sim contradição local entre os sujeitos – ou aqui as singularidades ou mônadas - que o compõem com o mundo. (DELEUZE, 1991, p. 93).


[4] Deleuze define os modos em que se compõem as sínteses de estruturação das séries de três maneiras, como “a sínteses conectiva (se ..., então), que recaí sobre a construção de uma só série; a síntese conjuntiva (e), como procedimento de construção de séries convergentes; a síntese disjuntiva (ou) que reparte as séries divergentes” (DELEUZE, 2000, p. 180). Para dar forma à compossibilidade dos incompossíveis, Deleuze recorre à terceira síntese, a disjuntiva, especificamente pelo modo inclusivo. Contudo, a síntese disjuntiva se opera de dois modos, sendo exclusiva, tendo um aspecto de segregação, limitativo e de negação em que o “’ou então’ [como indicador de exclusão] pretende marcar escolhas decisivas entre termos não permutáveis (alternativa)” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 25), marcando uma individualidade ou um mundo possível fixo para o sujeito, representando as sínteses de consciência sedentárias; e possuí, por outro lado, um aspecto inclusivo e não limitativo, aberto que congrega as singularidades positivamente em que o “’ou’ [inclusivo] designa um sistema de permutações possíveis entre diferenças que sempre retornam ao mesmo, deslocando-se, deslizando” (DELEUZE; GUATTAR, 2010, p. 25). 


[5] Para este aspecto, é importante delimitar a separação entre diferençação e diferenciação, assim “a diferenciação determina o conteúdo virtual da Ideia como problema, a diferençação expressa a atualização desse virtual e a constituição das soluções (por integrações locais). A diferençação é como que a segunda parte da diferença, e é preciso formar a noção complexa de diferenci/çação para designar a integridade ou a integralidade do objeto. O ci e o ç são aqui o traço distintivo ou a relação fonológica da diferença. Todo objeto é duplo, sem que suas duas metades se assemelhem, sendo uma a imagem virtual, e a outra, a imagem atual” (DELEUZE, 2018, p. 277-278).

 

[6] Sobre uma perspectiva psicanalítica desse deslocamento de uma série atual para uma virtual, representado por duas linhas horizontais, que se operam pelas verticais ou transversais, Deleuze - juntamente com Guattari - consideram esse sistema temporal de deslocamento e representação sendo linear, assim propondo um pontual, que se dá por ressonâncias e devires, transmissões de singularidades entre as séries atual e virtual (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 97-98).


[7] Segundo Deleuze, o Ego, como forma apreensível do sujeito cognoscente, que se produz após o campo pré-individual, este somente se percebe quando detecta algo que transcende os mundos incompossíveis e as séries divergentes como algo que se faz comunicar entre eles, um objeto = x móvel e deslocado entre eles que é o signo ambíguo e o elemento genético, que torna os mundos possíveis como casos de solução diferentes para um mesmo problema. Donde surge a forma de um Adão vago e objetivamente indeterminado (DELEUZE, 2000, p. 118), “isto é, positivamente definido por algumas singularidades somente que podem se combinar e se completar de maneira muito diferente em diferentes mundos” (DELEUZE, 2000, p. 118). Partindo de um sistema de predicação lógica, segundo a distribuição dos indivíduos – mônadas ou singularidades - nas séries, neste aspecto o mundo não é mais definido segundo predicados analíticos, mas sim pelo viés de predicados sintéticos definidas por sínteses disjuntivas (DELEUZE, 2000, p. 119).





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