RESUMO:
No
trabalho que se segue, objetiva-se realizar uma análise genealógica do conceito
de niilismo levando em conta sua relação com o conceito central do pensamento
do filósofo alemão Friedrich Nietzsche de vontade de poder e as noções de valor
e meta como condições de conservação e expansão do poder, assim como
atribuições de verdade para o mundo, este visto por Nietzsche como puro devir.
Neste contexto, discorreremos sobre noções como o perspectivismo da vontade de
poder em relação ao meio em que se insere e como isso se dá na maneira de
instaurações de domínios de poder sobre o mundo. Assim, desenvolvendo o
processo do niilismo, consideramos este como um devir, precisamente como um continuum
movimento de transformação em vias de seu momento extremo, este nada menos do
que a confirmação da absoluta ausência de sentido inerente ao devir. O ponto
extremo do niilismo é posto por Nietzsche no conceito de eterno retorno, como
reconhecimento da repetição insensata do vazio de sentido que eternamente
retorna em si mesmo. Desse modo, procedemos com o argumento de que o homem,
dado a destituição intrínseca de sentido do cosmos, necessita, por si só, criar
seu próprio sentido como meio de estabelecer seu campo de cultivo e conservação
de forças através de uma meta.
Palavras-chave: Nietzsche; niilismo; valor; vontade de poder; devir.
Introdução
A partir da problemática do niilismo,
considerando a crise dos valores na Europa e a previsão de Nietzsche para o
futuro “O que narro é a história dos próximos 200 anos. Descrevo o que está por
vir, o que já não pode se dar de outra forma: a ascensão do niilismo.”
(NIETZSCHE, 2012, p. 174, 11[411). Em uma breve definição: “que significa
niilismo? – o fato de que os valores supremos se desvalorizaram.”
(NIETZSCHE, 2013, p. 289, 9[35][27]). Desenvolvemos aqui, portanto, um estudo
genealógico do niilismo levando em conta o conceito de vontade de poder e sua
relação fundamental com a definição nietzschiana de valor. Como cerceamento
central da pesquisa, nos servimos, majoritariamente, dos textos contidos nos
fragmentos póstumos de Nietzsche do período de 1885 até 1889.
1. Valor
e devir
Valor, para Nietzsche, é “o ponto de
vista das condições de conservação-elevação no que diz respeito a
configurações complexas de duração relativa no interior do devir” (NIETZSCHE,
2012, p. 27, 11[73] [331]). Nietzsche se refere ao conceito de vontade de poder
neste contexto sendo que as condições de conservação-elevação são relacionadas
à quantidade de poder que se conserva em um campo completamente movente de
fluxos e a capacidade de expandir tal poder nestas mesmas condições sempre
moventes de alteração no devir.
O devir, propriamente, é a percepção de Nietzsche de
que não há qualquer estado final para o universo, deste modo, não há a ideia de
um Deus regente do universo em vias de uma meta ou de um ser que condicione o
sentido do próprio cosmos (NIETZSCHE, 2012, p. 26, 11[73] [330]). Como ele
dirá:
Se o mundo tivesse uma meta, então
ela já precisaria ter sido alcançada. Se houvesse para ele um estado final não
intencional, então ele também precisaria ter sido do mesmo modo alcançado. Se
ele fosse em geral capaz de um enrijecimento e de uma cristalização, de um 'ser', se ele tivesse ao menos por um instante em todo o seu devir, então ele
já teria chegado há muito tempo com todo o seu devir a esse fim, ou seja,
também com todo pensar, com todo 'espírito'. O fato do 'espírito' como de um
devir demonstra que o mundo não tem nenhuma meta, nenhum estado final e não
é capaz do ser (NIETZSCHE, 2015, p. 515, 36[15]).
Portanto, referente ao valor do devir, este
"possuí o mesmo valor a cada instante: a soma de seu valor permanece igual
a si mesma: expresso de outro modo: ele não possui nenhum valor, pois
falta algo a partir do qual ele poderia ser medido e em relação ao que a
palavra ‘valor’ teria um sentido.” (NIETZSCHE, 2012, p. 27, 11[73] [331]).
Assim,
no próprio devir, o valor se constitui como centros dominantes em que se
assegura o ponto de vista que encolhem e se expandem, sempre sendo pluralidades
de domínios e nunca unidades, sempre quantuns de poder (NIETZSCHE, 2012,
p. 27-28, 11[73] [331]).
Neste
aspecto, o valor é uma interpretação, sendo toda atribuição de valor sobre o
mundo uma maneira perspectiva de se impor uma vontade que configura um
significado e, deste modo, operar uma relação de poder sobre o objeto
cognoscível que se interpreta, criando assim conceitualmente em um mundo dado
de forma a priori sem sentido ou significação intrínsecas. “Inserir
aí um sentido – esta tarefa resta sempre ainda incondicionalmente,
supondo que nenhum sentido se acha aí” (NIETZSCHE, 2013, p. 296, 9[48][37]).
A
criação conceitual é a maneira do filósofo abstrair um conhecimento tornando-o
uma metonímia, ou seja, a representação de uma coisa por uma palavra que o
universalize naquilo, desse modo, “a ‘verdade’ converte-se num poder,
assim que a libertamos como abstração (NIETZSCHE, 2008, p. 75, 19[204]).
Desse modo, a vontade de verdade tanto nos
filósofos como em qualquer forma de atribuir valor ao mundo é posto por
Nietzsche como a “arte da interpretação”, sempre se remetendo a uma força
interpretativa (NIETZSCHE, 2013, p. 302, 9[60][46]). Necessariamente o homem
cuja vontade de poder é forte se constitui pelo caráter criador de sentido, ou
seja, por ficções para se pautar a existência em si, neste aspecto o filósofo e
o artista se colocam como célebres exemplos de interpretadores que atribuem
seus valores ao mundo estabelecendo perspectivas ainda assim inventadas.
2. Vontade
de poder e meta
As ficções, propriamente, não são
necessariamente formas de se extraviar do mundo, mas sim de se conseguir
estabelecer condições de existência mais positivas, ou seja, “uma crença
expressa, em geral, justamente a coerção de condições existenciais, uma
submissão à autoridade de relações sob as quais um ser prospera, cresce,
conquista poder..." (NIETZSCHE, 2013, p. 289, 9[35][27]). Desse modo,
se dão relações de uma hierarquização da vontade no interior do sujeito - ou de
grupos de indivíduos - em que as vontades individuais dispersas que compõem o
todo, se sujeitam a uma vontade que se coloca como soberana, fixando, assim,
uma meta para guiar e potencializar a expansão do poder.
No
interior do devir, o mundo é constituído por corpos que sempre buscam se
expandir. Os corpos são todas as coisas do mundo que tem vontade, que expressam
e interagem em relações de força. Sobre isso, Nietzsche esclarece:
Minha representação é a de que cada
corpo específico aspira a se tornar senhor de todo o espaço e a expandir sua
força ( - sua vontade de poder:) e a repelir tudo aquilo que resiste à sua
expansão. Mas ele depara constantemente com aspirações idênticas de outros
corpos e acaba por entrar em um arranjo com aqueles (‘se unir’) que lhe são
suficientemente aparentados: - assim, eles conspiram, então, conjuntamente
por poder (NIETZSCHE, 2012, p. 336-337, 14[186]).
As ficções, ou metas, no contexto de corpos individuados
como sujeitos, se dá no aspecto de que “Não há nenhuma vontade: há
pontuações volitivas, que constantemente ampliam ou perdem seu poder” (NIETZSCHE,
2012, p. 27, 11[73] [331]), assim, há uma pluralidade no interior do indivíduo,
cada uma lutando por um objetivo específico. Dessa maneia a meta é quando uma
vontade comanda e as outras vontades obedecem, levando ao que é a sensação de
livre-arbítrio que é quando tal vontade, ao se sobressair sobre as outras,
sente prazer com isso.
‘Livre-arbítrio’ é a expressão para
o multiforme estado de prazer do querente, que ordena e ao mesmo tempo se
identifica com o executor da ordem – que, como tal, goza também do triunfo
sobre as resistências, mas pensa consigo que foi sua vontade que as superou
(NIETZSCHE, 2005, p. 24).
O prazer em Nietzsche não é o foco da vontade, mas sim
a própria expansão do sentimento de poder, sendo este primeiro uma mera
consequência - tanto como o desprazer - no processo de superação de
resistências à vontade:
O homem não procura o prazer
e não evita o desprazer: é fácil compreender que celebre preconceito
estou contradizendo com isso. Prazer e desprazer são meras consequências, meros
fenômenos paralelos – o que o homem quer, o que cada parte mínima de um
organismo vivo quer, é um mais de poder (NIETZSCHE, 2012, p. 324, 14[174]).
Segundo Nietzsche: “O que é bom? – Tudo o
que eleva o sentimento de poder, a vontade de poder, o próprio poder no homem.
O que é mau? – Tudo o que vem da fraqueza. O que é felicidade? – O sentimento
de que o poder cresce, de que uma resistência é superada” (NIETZSCHE, 2016, p.
10). Levando isso em conta, toda ficção que se cria como condição de vida, ou
seja, a meta e valor que se atribui, buscam essa expansão de poder. Com isso,
sobre a ideia das ficções como preceito para existência, Nietzsche diz:
Tenho até mesmo por princípio a crença no fato de que as suposições mais falsas são aquelas que para nós se mostram como mais imprescindíveis, que sem um fazer-se valer das ficções lógicas, sem uma medição da realidade efetiva pelo mundo inventado do incondicionado, do igual a si mesmo, o homem não consegue viver e que uma negação dessa ficção, uma recusa prática a ela, significaria o mesmo que uma negação da vida. Admitir a não verdade como condição de vida: significa afastar de si, naturalmente de uma maneira terrível, os sentimentos valorativos habituais – e, aqui, se é que em algum lugar, não se tornar exangue junto ‘à verdade conhecida’. É preciso evocar imediatamente em meio a esse perigo extremo os instintos fundamentais criadores do homem, que são mais fortes do que todos os sentimentos valorativos (NIETZSCHE, 2015, p. 488-489, 35[37]).
A vontade de poder se coloca como o centro ressoante
do próprio sentido em Nietzsche onde, quando este fala da interpretação que os
físicos têm sobre o mundo, reitera a questão de que essa atribuição de valor
como condicionamento para uma verdade “não é de modo algum essencialmente
diversa da imagem de mundo subjetiva. Ela é apenas construída com os sentidos
mais amplamente pensados, mas de qualquer forma inteiramente com nossos
sentidos” (NIETZSCHE, 2012, p. 336, 14[186]). Deste modo, a noção do
perspectivismo aqui é ressaltada como necessária, “em virtude do qual cada
centro de força – e não apenas o homem – constrói a partir de si o resto do
mundo, isto é, mede-o, toca-o e configura-o a partir de sua força...” (NIETZSCHE,
2012, p. 336, 14[186]).
3. Verdade e vontade de verdade
A ideia sempre presente da necessidade de
ficções para traduzir o mundo é por conta de que não há como saber a
constituição real das coisas, ou seja, a verdade. O aparelho perceptivo do ser
humana capta o mundo de uma certa maneira, de modo que o de um animal ou de uma
planta captam de outra de maneira que não somos capazes de conceber. “Para o
vegetal, o mundo é tal e tal – e, para nós, tal e tal. Se compararmos as duas
forças perceptivas, a nossa concepção de mundo nos parecerá mais correta, isto
é, mais condizente com a verdade” (NIETZSCHE, 2008, p. 66, 19[158]). Assim como
cada indivíduo ou área do conhecimento interpretam a constituição das coisas de
uma maneira, desenvolvendo conceitos que os traduzem como verdades. A verdade,
portanto, para Nietzsche é apenas uma perspectiva subjetiva que se processa
linguisticamente em conceitos, sendo universalizações metafóricas, sempre a
partir do ponto de vista humano. Desse modo, a verdade é
Um exercício móvel de metáforas,
metonímias, antropomorfismos, numa palavra, uma soma de relações humanas que
foram realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas, e que, após
uma longa utilização, parecem a um povo consolidadas, canônicas e obrigatórias:
as verdades são ilusões das quais se esqueceu que elas assim o são, metáforas
que se tornam desgastadas e sem força sensível, moedas que perderam seu troquel
e agora são levadas em conta apenas como metal, e não mais como moedas
(NIETZSCHE, 2008, p. 36).
Não
captamos a realidade das coisas, ou seja, a “coisa em si”, porque ela não
existe. Podemos ter tão somente uma percepção subjetiva e parcial do mundo, mas
nunca o mundo, pois o mundo é o mundo do devir. Como mundo do devir, como mundo
que não é possível atribuir um sentido intrínseco, Nietzsche o descreve da seguinte
forma:
E vós também sabeis o que para mim
é ‘o mundo’? Devo mostrá-lo a vós em meu espelho? Esse mundo: um elemento
descomunal de força, sem início, sem fim, uma grandeza fixa de força, com o
caráter de bronze, que não se torna maior, nem menor, que não se desgasta, mas
apenas se transforma, como um todo imutavelmente grande, uma administração sem
gastos e sem perdas, mas do mesmo modo sem crescimento, sem entradas, envolvida
pelo ‘nada’ como por seus limites, nada que se desvaneça, nada que se dissipa,
nada infinitamente extenso, mas inserido como força determinada em um espaço
determinado, que em algum lugar seria ‘vazio’, mas que se mostra mais como
força em toda parte, como jogo de forças e ondas de força mesmo tempo um e
‘muitos’, acumulando-se aqui e ao mesmo tempo diminuindo lá, um mar em si de
forças que se abatem tempestuosamente sobre si mesmas e que afluem para o
interior de si mesmas, eternamente se alterando, eternamente correndo de volta,
com anos descomunais do retorno, com uma vazante e uma enchente de suas
figuras, impelindo a partir das mais simples em direção às mais multifacetadas,
a partir do mais silencioso, mais rígido, mais frio em direção ao mais ardente,
mais selvagem, mais contraditório em relação a si mesmo, e, então, uma vez mais
retornando ao simples a partir da plenitude, a partir do jogo das contradições
de volta para o prazer da ressonância, afirmando a si mesmo ainda nessa
igualdade de suas vias e anos, abençoando a si mesmo como aquilo que precisa
eternamente retornar, como um devir, que não conhece nenhuma saciedade, nenhum
enfado, nenhum cansaço -: esse meu mundo dionisíaco do
eterno-criar-a-si-mesmo, do eterno-destruir-a-si-mesmo, esse mundo-misterioso
da dupla volúpia, esse meu para além do bem e do mal, sem meta, se é que não
reside na felicidade do círculo uma meta, sem vontade, se é que um anel não tem
uma boa vontade em relação a si mesmo – vós quereis um nome para esse
mundo? Uma solução para todos os enigmas? Uma luz também para
vós, os mais abscônditos de todos os abscônditos, os mais fortes, mais
destemidos, mais amigos da meia-noite? – Esse mundo é a vontade de poder
– e nada além disto! E vós também sois essa vontade de poder – e nada
além disto! (NIETZSCHE, 2015, p. 565-566, 38[12]).
A
vontade de verdade, portanto é “um fixar, um tornar
duradouramente verdadeiro, um fazer com que aquele caráter falso
desapareça da vista, uma reinterpretação desse caráter em meio ao ente” (NIETZSCHE,
2013, p. 318, 9[91][65]). Ela tenta domar o devir incessante das forças por
meio de conceitos como meta, finalidade ou mesmo ente e Deus. Mas a vontade de
verdade, por outro lado, pode ser uma expressão da vontade de poder:
A verdade, com isso, não é algo que
existiria e que se precisaria encontrar, descobrir – mas algo que é preciso
criar e que dá o nome para um processo, mais ainda, para uma vontade
de dominação, que não tem em si nenhum fim: inserir a verdade como um processus
in infinitum, um determinar ativo, não um conscientizar-se de
algo <que> seria “em si” fixo e determinado. (NIETZSCHE, 2013, p. 318,
9[91][65]).
Segundo Nietzsche, se mede o grau de força
da vontade no limiar próprio em que o indivíduo consegue prescindir do sentido
intrínseco das coisas e, desatrelado de um valor posto como a priori,
consegue, a partir de sua própria vontade, estabelecer seus próprios valores (NIETZSCHE,
2013, p. 302, 9[60][46]).
4. O
devir do niilismo
Nietzsche
quando define o ideal ascético, o descreve como “uma vontade de nada,
uma aversão à vida, uma revolta contra os mais fundamentais pressupostos da
vida, mas é e continua sendo uma vontade!” (NIETZSCHE, 2009, p. 140). O problema
do niilismo é pôr o “porquê” no nada, ou seja, atribuir o valor da existência -
em outras palavras, aquilo que estabelece as condições de conservação e
expansão de poder - em algo completamente ausente de realidade tangível.
Realidade no sentido tátil dos sentidos, aquilo que media nossa relação com o
mundo.
Niilismo
significa propriamente uma ausência de valor: “Niilismo: falta a meta:
falta a resposta ao ‘por quê?’” (NIETZSCHE, 2013, p. 289, 9[35][27]), sendo
também definido como o páthos do “em vão” (NIETZSCHE, 2013, p. 302, 9[60][46]),
portanto, numa acepção psicológica, o niilismo passa por três estágios: um
primeiro em que é a “conscientização da longa dissipação de força, a
agonia do ‘em vão’” (NIETZSCHE, 2012, p. 36, 11[99], §1), ou seja, a aflição e desilusão frente a ausência
de meta do devir em si. No segundo momento, o homem não acredita mais em seu
valor e concebe “uma totalidade a fim de poder acreditar no seu valor”
(NIETZSCHE, 2012, p. 37, 11[99], §1),
buscando estabelecer uma unidade da qual dependa sua crença referente a uma
meta. O terceiro e último momento é o que “encerra em si a descrença em um
mundo metafísico – que se proíbe a crença em um mundo verdadeiro”
(NIETZSCHE, 2012, p. 37, 11[99], §1),
nesse ponto, aceita-se a realidade do devir e não se consegue mais se contentar
com qualquer mascaramento pautado em planos ideais para justificar o próprio
movimento do devir. Neste ponto culminante, as categorias interpretativas de
“meta”, “unidade” e “ser” são descartadas e se compreende a existência como
destituída de valor (NIETZSCHE, 2012, p. 38, 11[99], §1).
Podemos,
portanto, tomar o niilismo como um processo, um devir necessário. Nietzsche
mesmo se coloca como “o primeiro niilista perfeito da Europa que, porém, já
viveu em si até o fim o próprio niilismo – que o deixou para trás de si, sob
si, fora de si...” (NIETZSCHE, 2012, p. 174, 11[411], §3). Nisso, percebemos que o niilismo é uma passagem
fundamental para que haja o ponto culminante da transvaloração de valores - ou
podemos fazer uso da expressão transubstanciação, à maneira dos alquimistas,
que retiram metais nobres de metais menos valiosos por um processo de
transformação química - extraindo novos valores, criando novos valores a partir
do próprio niilismo. Como dirá Nietzsche:
Pois por que ascensão do niilismo é
a partir de agora necessária? Porque os nossos próprios valores é que
retiram nele a sua derradeira consequência; porque o niilismo é a lógica
pensada até o fim de nossos grandes valores e ideais – porque precisamos
primeiro vivenciar o niilismo, para que cheguemos a descortinar qual era
propriamente o valor desses ‘valores’ (NIETZSCHE, 2012, p. 175, 11[411],
§4).
O niilismo passa a se nortear, a partir de
um certo ponto da história do pensamento epistemológico moderno, pelo
acontecimento descrito por Nietzsche como a morte de Deus. Neste ponto singular
a história dos valores entra em crise. A morte de Deus, Nietzsche o descreve no
notório aforismo 125 da Gaia Ciência, como se segue:
O
homem louco. – Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu
uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro
Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam
em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido?
Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está se
escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam
uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os
com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós os
matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso?
Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o
horizonte? Que fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela
agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos
continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções?
Existem ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada
infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio?
Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos
o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação
divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E
nós os matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O
mais forte e sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os
nossos punhais – quem nos limpará esse sangue? Com que água poderíamos nos
lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A
grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos
nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve ato maior – e
quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais
elevada que toda a história até então!” Nesse momento silenciou o homem louco,
e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando
espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu
tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda
aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das
estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo
para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais
longínqua constelação – e no entanto eles cometeram!” – Conta-se também
no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas, e em cada uma entoou o
seu Réquiem aeternaum deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a
responder: “O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de
Deus?” (NIETZSCHE, 2012, §125).
A
morte de Deus é propriamente a queda dos valores cosmológicos, a
destituição da verdade imutável da metafísica platônica e do cristianismo com
Deus. Como Nietzsche diz a respeito do niilismo:
A questão do niilismo, ‘para
que?’, parte do hábito até aqui, graças ao qual a meta parecia colocada,
dada, exigida de fora – a saber, por meio de uma autoridade supra-humana qualquer.
Depois que se desaprende a acreditar nesse hábito, busca-se, então, segundo o
hábito antigo, uma outra autoridade que soubesse falar incondicionalmente,
que pudesse comandar metas e tarefas. A autoridade da consciência
entra agora em primeira linha (quanto mais emancipada da teologia, tanto mais
imperativa se torna a moral); como indenização por uma autoridade pessoal.
Ou a autoridade da razão. Ou o instinto social (o rebanho). Ou a história
com um espírito imanente, que tem em si sua meta e que se pode entregar a
si (NIETZSCHE, 2013, p. 293, 9[43][33]).
Segundo
a perspectiva psicológica do niilismo, nos três estágios vistos anteriormente,
esse ponto é o mesmo ponto em que se encontra o niilismo cuja necessidade
insere uma unidade como meta exterior para se basear existência, mas difere deste
por ser uma consequência da morte de Deus. Assim, os valores cosmológicos
desvalorizados abrem margem para os valores humanos, demasiado humanos.
O
niilismo como processo se coloca como um estado intermediário
patológico, Nietzsche definindo como patologia “a universalização descomunal, a
conclusão relativa à inexistência de sentido” (NIETZSCHE, 2013, p. 290,
9[35][27]). Desse modo, segundo a percepção da vontade de poder, o
niilismo se comporta de dois modos: como passivo, ou como ativo. Assim, o
niilismo é ambíguo, podendo expressar, como ativo, um “sinal do poder
elevado do espírito”, ou, como passivo, como “declínio e retrocesso do
poder do espírito.” (NIETZSCHE, 2013, p. 289-290, 9[35][27]). No
entanto, o ponto de intersecção é quando o niilismo passivo alcança seu máximo
de força relativa, que é “alcançado por ele como força violenta de destruição:
como niilismo ativo.” Um se transmuta no outro, devém outro. (NIETZSCHE,
2013, p. 290, 9[35][27])
A vontade, como ambiguidade do sentimento
de poder, pode representar uma elevação das forças e, consequentemente
tornando-se insuficientes as metas tradicionais postas como crenças e
convicções; inversamente ela pode significar também uma debilidade das forças,
se tornando incapaz de estabelecer qualquer meta ou por que?. (NIETZSCHE, 2013,
p. 289-290, 9[35][27]).
5. O niilismo extremo: o eterno retorno
Para se operar uma transvaloração do
niilismo, é preciso atingir seu ponto culminante, sua forma mais extrema, a
aceitação de que não há qualquer realidade escondida do mundo, ou mesmo uma
verdade eterna, nem qualquer meta final. O ponto extremo do niilismo é colocar
o valor das coisas “precisamente no fato de que não corresponde, nem
correspondia a esse valor nenhuma realidade, mas apenas um sintoma de
força por parte dos que estabeleceram o valor, uma simplificação com a finalidade
da vida” (NIETZSCHE, 2013, p. 289-290, 9[35][27]). Uma pura expressão da
vontade de poder.
De
ambas as perspectivas, psicológica ou pela vontade, opera-se uma inversão de
bases do niilismo em si mesmo. Mas isso só é possível a partir da inserção de
um elemento fundamental: o eterno retorno. A ideia da ausência total de sentido
no universo e no devir em sua forma mais terrível “a existência, tal como ela
é, sem sentido e sem meta, mas inevitavelmente retornando, sem um final no
nada: ‘o eterno retorno’. Esta é a forma mais extrema do niilismo: o nada (o
‘sem sentido’) eternamente!” (NIETZSCHE, 2013, p. 180, 5[71]). O que significa
o eterno retorno como niilismo extremo? A confirmação de uma existência já
posta como sem sentido ou objetivo qualquer a priori. O eterno retorno
restitui a ideia de que não há nada novo no além vida, mas tão somente na vida.
O
que é exatamente o eterno retorno? Ele é a ideia singular, dita pelo próprio
Nietzsche como sendo “o maior dos pesos” de que a vida, tal como se viveu e se
vive atualmente, há de retornar em toda sua identidade por todo o sempre.
O maior dos pesos – E se um dia, ou uma noite, um
demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse:
‘Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma
vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada
prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e
pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e
ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse
instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente
– e você com ela, partícula de poeira!’ – Você não se prostraria e rangeria os
dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um
instante imenso, no qual lhe responderia: ‘Você é um deus e jamais ouvi coisa
tão divina!’ Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o
transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, ‘Você
quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?’, pesaria sobre os seus atos
como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com
a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e
chancela? (NIETZSCHE, 2012, p. 205).
Um conceito percebido muito comummente, a princípio,
de forma fatalista. O que se passou não pode ser mudado e vai se repetir
infinitas vezes. Mas, num segundo momento, num aprofundamento reflexivo que
Nietzsche nos convida a ter sobre este pensamento mais pesado, faz com que, o
que foi feito, de fato não mude, mas, como dito em seu Zaratustra, a redenção da
vontade para com o passado se encontra em que o que foi feito seja de fato
querido, onde o assim foi se torna assim eu quis (NIETZSCHE, 2018, p. 136).
Novamente a vontade é central aqui tendo um caráter de
seletividade essencial para com o eterno retorno em que deve-se querer o
retorno daquilo que se faz.
Meu ensinamento diz: viver de tal
modo que tenhas de desejar viver outra vez, é a tarefa -, pois assim
será em todo caso! Quem encontra no esforço o mais alto sentimento, que
se esforce; quem encontra no repouso o mais alto sentimento, que repouse; quem
encontra em subordinar-se, seguir, obedecer, o mais alto sentimento, que
obedeça. Mas que tome consciência do que é que lhe dá o mais alto
sentimento, e não receie nenhum meio! Isso vale a eternidade!
(NIETZSCHE, 1983, p. 442, §27).
O
eterno retorno se propõe, portanto, como uma perspectiva ética de ver o mundo,
em que o indivíduo deve pesar seus atos segundo o questionamento “Você quer
isso mais uma vez e por incontáveis vezes?” (NIETZSCHE, 2012, p. 205). O mais
alto sentimento é o sentimento da vontade de poder, em que se experiencia a
expansão de sua força, e o eterno retorno é propriamente a colocação da meta,
como algo que eleva as condições de conservação e elevação de poder no plano
caótico do devir. O eterno retorno é o desejo de fazer retornar aquilo em que a
vontade experienciou sua mais ampla expansão, assim, ele se comporta de dois
modos: como aquilo que se quer que se repita eternamente em um ciclo
cosmológico; e, de maneira mais ligada a vida imanente, da maneira que se exercita
os momentos buscando o sentimento de expansão de poder, assim, construindo uma
vida, em si mesma, segundo o agir prático.
No
eterno retorno, no entanto, se incorpora o retorno não somente dos momentos de
expansão de poder, estes que se traduzem no efeito do prazer, mas também o de
resistências que se colocam como causadoras de desprazer e sofrimento. Na
aspiração ao poder o sentimento de obstáculos superpostos se torna cada vez
mais requerido, assim
O desprazer, como obstáculo à sua
vontade de poder, é, portanto, um fato normal, o ingrediente normal daquele
acontecimento orgânico; o homem não se afasta desse ingrediente, ele necessita
dele muito mais incessantemente: toda vitória, todo sentimento de prazer, todo
acontecimento pressupõe uma resistência superada (NIETZSCHE, 2012, p. 324,
14[174]).
Tomamos
o célebre aforismo de Nietzsche "Da escola de guerra da vida. - O
que não me mata me fortalece” (NIETZSCHE, 2017, p. 9), consideramos a
perspectiva de Nietzsche segundo a qual o sofrimento se torna um componente
necessário para a superação e expansão do poder no homem. De seu próprio
período de extremo adoecimento, Nietzsche constata:
Não gostaria de despedir-me
ingratamente daquele tempo de severa enfermidade, cujo benefício ainda hoje não
se esgotou para mim: assim como estou plenamente cônscio das vantagens que a
minha instável saúde me dá, em relação a todos os robustos de espírito
(NIETZSCHE, 2012, p. 12).
Assim,
como uma abelha que produz seu mel, o homem retira dos mais trágicos momentos
de dor um novo ponto de vista. Desse modo,
de tais abismos, de tal severa
enfermidade, também da enfermidade da grave suspeita voltamos renascidos,
de pele mudada, mais suscetíveis, mais maldosos, com gosto mais sutil para a
alegria, com língua mais delicada para todas as coisas boas, com sentidos mais
risonhos, com uma segunda, mais perigosa inocência na alegria, ao mesmo tempo
mais infantis e cem vezes mais refinados do que jamais foram antes (NIETZSCHE,
2012).
O niilismo extremo é, antes de qualquer
coisa, uma ferramenta seletiva, que separa os fortes cuja constituição de
existência não requer mais qualquer meta suprassensível para subsistência, dos
fracos que ainda requerem os pressupostos de uma moral como guia. Neste
contexto, Nietzsche afirma que a moral foi “o grande antídoto contra o niilismo
prático e teórico” (NIETZSCHE, 2013, p. 179, 5[71] §1), contudo “o poder
alcançado do homem permita agora um rebaixamento dos meios de cultivo,
dos quais a interpretação moral era o que há de mais intenso” (NIETZSCHE, 2013,
p. 179, 5[71] §3), sendo o homem agora capaz de suportar os contrassensos e
acasos do devir.
6. Zaratustra
e a superação do niilismo
O
que se mostra é que no período de sua escrita, Nietzsche constatava como
diagnóstico do niilismo europeu a presença do grande sentimento do “em vão”,
cujas metas tradicionais da metafísica se tornavam insuficientes, assim como
queda desses valores cosmológicos, a nova avaliação, ou como método seletivo,
se inseria pelo mais extremo desse sentimento de “em vão”, pelo eterno retorno.
Seu pensamento condiciona a um perecimento dos fracos, como um “levar ao
perecimento como uma seleção instintiva daquilo que precisa ser destruído”
(NIETZSCHE, 2013, p. 182, 5[71] §11), onde os tipos mais doentes dos homens
tomam a crença do eterno retorno como uma maldição (NIETZSCHE, 2013, p. 183,
5[71] §14).
Tal
vontade de perecimento é, ainda assim, um elemento do niilismo em que ele mesmo
se leva a sua inversão “a vontade de destruição como vontade de um instinto
ainda mais profundo, do instinto da autodestruição da vontade de nada”
(NIETZSCHE, 2013, p. 182, 5[71] §11).
A
constatação essencial desse processo como uma autodestruição encontramos em Assim
Falou Zaratustra, onde o próprio personagem de Zaratustra atravessa os
estágios de uma profunda aflição e retraimento de sua vontade frente o encontro
com o adivinho, como momento do grande nojo do homem, o páthos do em vão
repetindo “tudo é vazio, tudo é igual tudo foi” (NIETZSCHE, 2018, p. 128) e,
uma segunda vez quando lhe é revelado o pensamento do eterno retorno no
capítulo “da visão e do enigma”, onde em tal visão, Zaratustra se pergunta
“Quem é o homem em cuja garganta entrará tudo de mais pesado, de mais negro?”
(NIETZSCHE, 2018, p. 153).
Mas
como a própria interpretação de Zaratustra desse enigma, de uma serpente que se
enfiava garganta adentro do homem carregando o pesadume do tempo, o próprio
Zaratustra lhe ordena que a morda, que a destrua. Assim feito, o homem, cuja
serpente foi cortada a cabeça, se via não mais como um homem, mas “um
transformado, um iluminado que ria! Jamais, na terra, um homem ria como ele
ria!” (NIETZSCHE, 2018, p. 153-154).
Em um terceiro momento, frente o pensamento abissal do eterno retorno, no capítulo “o convalescente” (NIETZSCHE, 2018, p. 206-212), Zaratustra se nega a aceitar o pensamento do eterno retorno, encontra nele ainda a gravidade e o peso de um abismo intransponível de vácuo de sentido no retorno idêntico de todas as coisas. É por meio de seus animais que o coloca par-a-par com o eterno retorno, com a necessidade do retorno mesmo do homem pequeno, do homem niilista, que se opera o processo das metamorfoses do espírito (NIETZSCHE, 2018, p. 25-27).
Do
sim do camelo, cuja afirmação se refere tão somente a carregar o peso dos
valores estabelecidos, da moral e das metas postas como indissolúveis, dos
valores cosmológicos e metafísicos que se instauram como o guia do homem e que
se dão tão somente como uma conservação do estado atual; vem o Não do leão, como
destruição dos valores estabelecidos, como negação dessas metas absolutas e
negação do sentido intrínseco do devir; procedendo
para o Sim da criança, o Sim criador, o Sim que trás com sigo a leveza da
dança, do riso e do jogo, contrários ao espírito do peso que os homens
superiores - representantes do niilismo, avatares do último homem - não
conseguem fazer “Ó homens superiores, o pior que há em vós é: não aprendestes a
dançar como se deve dançar – indo além de vós mesmos! Que importa se
malograstes? Quanta coisa ainda é possível! Então aprendei a rir indo
além de vós mesmos!” (NIETZSCHE, 2018, p. 280).
Fazendo um traçado genealógico sobre a história do niilismo, Nietzsche o descreve como a “história de um erro”, ou “como o ‘mundo verdadeiro’ se tornou fábula” (NIETZSCHE, 2017, p.25-26), como a história dos grandes valores humanos, tendo em vista como valor a ficção de um mundo ideal que justifique este. Nasce, portanto com o sábio antigo, alcançável pela devoção à verdade; Platão é o ilustre representante deste estágio. O niilismo como devir se desenvolve, se torna cristão, como um mundo inalcançável, mas prometido na vida após a morte pela fé e devoção àqueles que expiam seus pecados. Segue-se disso que o mundo verdadeiro perde substancialidade, não é mais possível demonstrá-lo, mas servindo tão somente como consolo no próprio pensamento, transmutando-se em uma obrigação imperativa para com este; se torna moral, universalizando o dever a partir de Kant. Por uma vez, o “mundo verdadeiro” desponta - não mais verdades eternas impositivas, mas o desconhecido - não obstante o desconhecido não impele a nada tanto quanto não traz o consolo necessário daquilo que justifique este mundo; este o momento do positivismo científico. Culmina, enfim, na aceitação de que não há “mundo verdadeiro”, tal hipótese sendo recusada, recusa-se com ela o próprio conceito de mundo aparente, ou seja, a ficção da dualidade de mundo, confirmando-se que só há este mundo e nada mais. Ponto culminante do niilismo, momento determinante para a criação de novos valores. O “mundo verdadeiro”, tanto como a “meta” final do todo são restituídas ao seu lugar de direito: como ficções. Ao homem, portanto, se abre o horizonte para criar sua própria ficção sem se valer das de outros.
Conclusão
Qual
é, essencialmente, o antídoto para o niilismo? Nietzsche sintetiza todo esse
processo em Crepúsculo dos Ídolos em
uma curta máxima: “A fórmula da minha felicidade: um sim, um não, uma linha
reta, uma meta...” (NIETZSCHE, 2017,
p. 8). O sim como criação subjetiva de valor, como a criança que atribui ao
mundo o valor inocente da ausência de uma seriedade conceitual para com a
verdade. O não como negação do sentido posto, do valor inerente a tudo como
dado, estabelecido. A linha reta como processo, devir incessante de
desenvolvimento e nunca fixidez. A meta como atribuição subjetiva, criação
estética, expressão da vontade de poder que se mescla com o sem sentido do mundo
e se faz como meta no espaço específico, no qual tal meta eleva as condições de
conservação de poder e potencializa a expansão desse mesmo poder no contexto
sempre móvel e incerto do devir. Portanto:
Se não há nenhuma meta em toda a história dos destinos humanos, então precisamos inserir uma: supondo justamente que uma meta nos é necessária e que, por outro lado, a ilusão de uma meta e de uma finalidade imanentes se tornou transparente. E nós necessitamos de metas, porque nós necessitamos de uma vontade – que seja nossa espinha dorsal. ‘Vontade’ como indenização pela ‘crença’, isto é, pela representação de que há uma vontade divina, uma que tem algo em vista conosco... (NIETZSCHE, 2013, p. 199-200, 6[9).
De todo modo, o valor se coloca como uma
condição necessária para a existência, a proposta nietzschiana, no entanto, é a
reavaliação dos valores estabelecidos e, consequentemente, a criação de novos
valores. Como Nietzsche dirá, “Não há nada na vida que possua valor, a não ser
o grau de poder – supondo justamente que a própria vida é vontade de poder”
(NIETZSCHE, 2013, p. 182, 5[71] §10), neste aspecto, o valor atribuível pelo
homem ao mundo equivale ao grau de poder que se retira de cada coisa, de cada
momento, o quantum de poder que se
eleva frente cada situação. Desse modo, a meta subjetiva que se insere é tão
somente um intensificador e é correlato à potencial capacidade da vontade de
poder de se expandir e abarcar o máximo que pode nas circunstâncias
estabelecidas pelo devir.
É por isso que Nietzsche considera a arte a forma mais elevada de criação, pois tanto a filosofia quanto a ciência buscam a verdade, mas a arte busca tão somente a mentira. Neste sentido, a arte considera que não há uma “verdade” escondida por trás das coisas, ela é o próprio mascaramento do devir através de uma interpretação subjetiva atribuindo um valor meramente fictício - como qualquer valor criado - o diferencial é que ela reconhece que seu valor é uma mentira. Como no platonismo, a arte seria a cópia da cópia, o simulacro. Nietzsche considera que o maior adversário de sua filosofia é o platonismo e que sua própria filosofia se coloca como um platonismo invertido. “Minha filosofia, platonismo invertido: quanto mais longe do ser verdadeiro tanto mais puro, mais belo, melhor. A vida na aparência como meta” (NIETZSCHE, 1988, p. 199, KSA 7, 7[156]). O platonismo invertido é, nada mais do que priorizar a cópia imperfeita no lugar da forma ideal, o simulacro no lugar da imagem. A negação do mundo real pelo ideal é exatamente onde se dá o nascimento do niilismo.
Referências:
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. 1. ed. São Paulo: Companhia de
Bolso, 2012.
______________.
Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma
Filosofia do Futuro. Tradução de Paulo César de Souza. 1. Ed.
São Paulo: Companhia de Bolso, 2005.
______________. Assim Falou Zaratustra: Um Livro Para Todos e Para Ninguém. Tradução de Paulo César de Souza. 1.
ed. São Paulo: Companhia de Bolso, 2018.
______________.
Crepúsculo dos Ídolos. Tradução de Paulo César de Souza. 1.
Ed. São Paulo: Companhia de Bolso, 2017.
______________. Fragmentos Póstumos 1884-1885 (Volume V). Tradução de Marco Antônio
Casanova. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
______________. Fragmentos Póstumos 1885-1887 (Volume VI). Tradução de Marco
Antônio Casanova. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
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Fragmentos Póstumos 1887-1889 (Volume
VII). Tradução de Marco Antônio Casanova. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2012.
______________.
Genealogia da Moral: Uma Polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia de Bolso, 2009.
______________.
Nietzsche: Obras Incompletas. In: Os
Pensadores. Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural,
1999.
______________. O Anticristo: Maldição do Cristianismo / Ditirambos de Dionísio. Tradução de Paulo César de Souza. 1.
ed. São Paulo: Companhia de Bolso, 2016.
______________. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe (KSA:
15 vols.). Hrsg. von G. Colli und M. Montinari. Berlin/New York: de Gruyter,
1988.
______________. Sobre Verdade e Mentira. Tradução
de Fernando de Moraes Barros. São Paulo: Hedra, 2008.
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