A relação entre a magia sigílica de Austin Osman Spare e a filosofia de Nietzsche, Deleuze e Guattari: Vacuidade da mente, não-sentido e transvaloração de crença; A Postura de Morte e o Corpo sem Órgãos, o desejo orgânico e a produção desejante - Individuação do signo do sigilo como atualização da Ideia virtual
Matt Lee compara a
questão da magia com a ciência segundo os termos trabalhados por Deleuze e
Guattari de série e estrutura, sendo que, no primeiro, a magia se encaixaria
numa serie evolutiva de controle e compreensão da natureza, sendo anterior a
ciência e inferior a esta em suas tecnologias; contudo em termos de estrutura,
a magia seria estruturalmente idêntica à ciência, contendo suas idiossincrasias
em uma sociedade específica, com uma tecnologia diferente da cultura em que se
assenta o domínio cientifico (LEE, 2021, p. 130).
Assim, consideramos ambos
os campos, cientifico e mágico, como graus diferentes de fabulação para ocupar
o vazio de sentido deixado pelo niilismo, sendo a magia um grau ativo de
valoração criadora em que se assenta um domínio estruturalmente mais próximo da
natureza, considerando uma imanência com a Terra e com o animal, inclusive os
instintos primais, em contraparte com a ciência que se afasta constantemente
dos domínios naturais por um campo racional e lógico cada vez maior.
A Ascensão do Ego do Êxtase ao Êxtase
Tomamos o anúncio de
Nietzsche sobre a morte de Deus: O homem racional o matou e este permanece
morto, contudo, necessário é um campo vasto de ficções para superar o niilismo
que assola o presente e futuro vindouro do homem contemporâneo, a fim de não se
desesperar na aniquilação passiva de uma sociedade ausente de valores.
Criar valores se traduz
na forma de fabricar ficções, desde que estas impulsionem e fortifiquem a vida
e o movimento da vida. Sobretudo, é necessário firmar um materialismo radical
quanto ao mundo sensível, ou seja, a cópia da Ideia platônica. Como ele dirá:
A falsidade de um conceito não é para mim nenhuma objeção contra
ele: Nesse ponto, talvez, é que nossa língua soe da maneira mais estranha
possível: a questão é até que ponto ele é fomentador da vida, conservador da
vida, conservador da espécie. Tenho até mesmo por princípio a crença no fato de
que as suposições mais falsas são aquelas que para nós se mostram como mais
imprescindíveis, que sem um fazer-se valer das ficções lógicas, sem uma
medição da realidade efetiva pelo mundo inventado do incondicionado, do
igual a si mesmo, o homem não consegue viver e que uma negação dessa ficção,
uma recusa prática a ela, significaria o mesmo que uma negação da vida. Admitir
a não verdade como condição de vida: significa afastar de si, naturalmente
de uma maneira terrível, os sentimentos valorativos habituais – e, aqui, se é
que em algum lugar, não se tornar exangue junto ‘à verdade conhecida’
(NIETZSCHE, 2015, p. 488-489, 35[37], Maio – Julho de 1885).
A questão da ficção como
potencializadora para a vida é expressamente presente na filosofia esotérica de
Austin Osman Spare, criador do Zos Kia Cultos e precursor filosófico do movimento
conhecido como Magia do Caos. De modo que para que se crie uma crença factível
para se propiciar um movimento de impulsionamento da vontade ou do desejo, é
necessário se atingir um êxtase de vacuidade mental que aqui atribuiremos como
o ponto do não-saber, o que Spare chama de estado de “Nem isto-Nem aquilo”, ou,
“não importa, não precisa ser” a partir daquilo que ele chama de postura de
morte, recebendo esse nome por se caracterizar por ser “o estado em que a mente
ultrapassou a concepção e não pode ser comparada a nada, pois implica somente a
si mesma[...] Não existe outro estado além desse, portanto ele, por si só, é
liberdade e existência verdadeiras” (SPARE, 2021, p. 234). O vazio gerador de
sentido ou de crença, ponto de negação da dualidade positivo-negativo ou
anulação dialética ao qual retorna a um puro vácuo em que o desejo se torna
orgânico e verdadeiramente subconsciente.
Spare esclarece o
processo da anulação da crença em vias da crença orgânica no ritual mágico
trabalhado pelo procedimento de sigilos como se segue:
O anseio de acreditar é necessariamente incompatível com a crença
existente e não se realiza pela inibição da crença já orgânica – é a negação do
anseio. A fé não move montanhas, não até ter removido a si mesma. Suponhamos
que eu queira ser grandioso (não contando que eu seja): ter “fé” e acreditar
que sou grandioso não faz de mim grandioso, ainda que eu mantivesse a aparência
de sê-lo até o fim... seria uma insinceridade cerimonial, a afirmação da minha
incapacidade. Eu sou incapaz porque essa é a verdadeira crença, orgânica.
Pensar que não é isso é puro fingimento. Portanto, a imaginação ou “fé” de que
sou grandioso é uma crença superficial. A reação ou negação são causadas pela
desagradável efervescência da minha incapacidade orgânica. Negá-la ou ter fé
não a modifica nem a aniquila, mas a reforça e a preserva. Desse modo, para que
a crença seja verdadeira, ela precisa ser orgânica e subconsciente. O desejo de
ser grandioso só pode se tornar orgânico no momento de vacuidade, e dando a ele
uma forma (sigilo). Quando tomamos consciência da forma do sigilo em qualquer
momento (exceto quando a magia acontece), é preciso reprimi-la através de um
esforço deliberado de esquecê-la – com isso, ele se torna ativo e domina o
inconsciente naquele período, sua forma se nutre e se associa ao subconsciente,
tornando a crença orgânica. Feito isso, ela se realiza e se torna realidade. O
sujeito se torna seu conceito de grandiosidade. (SPARE, 2021, p. 272-273).
Apesar da aparente ascese
negadora da vida contrária aos preceitos nietzschianos, Matt Lee atesta que “a
filosofia mágica de Spare se assemelha a uma abordagem taoísta e não budista,
talvez até zen-budista, em que a atividade sobre a crença é menos um processo
de negação e desconstrução do que um processo de liberação e de permissão de um
fluxo pleno de vida” (LEE, 2021, p. 142), focalizando na ideia da remoção do
ego em vias de uma vida pré-individual que se dá de forma mais plena, no caso
sendo o próprio ego secundário à manifestação de uma consciência orgíaca (LEE,
2021, p. 142).
Tal vida pré-individual
subconsciente pode ser relacionada, como o próprio Lee atesta, ao conceito de
campo transcendental deleuziano onde figuram tão somente singularidades
pré-individuais e a-subjetivas onde aqui consideramos estarem em um campo distinto-obscuro
virtual movente que operacionam sua individuação - ou seja, sua atualização no
campo dos fenômenos - apenas pela intersecção dos sigilos, sendo os sigilos
signos expressivos que partem de um método que conduz a vontade subconsciente
virtual no campo atual por meio de um simbolismo abstrato que condense o desejo
no signo.
Sempre que tratamos de
desejo, tratamos de libido, mesmo que o desejo que se tem em vista nada tem a
ver com sexo. Libido no sentido de energia pulsional canalizada a algo, fator
que condiciona um querer algo. No esquema da produção desejante, libido é o
nome da energia de trabalho que conecta as sínteses das máquinas desejantes
(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 26). Procede-se disso que parte dessa energia se
desenrola como energia de inscrição disjuntiva, o Numem onde, segundo a
tradução, refere-se a uma "vontade do espírito" ou "vontade
divina". Em consequência, parte dessa energia, passado o processo de
inscrição, se torna energia de consumo, Voluptas (volúpia ou prazer obtido com
o decorrer da operação) (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 31).
Tais sínteses se dão no
interior do Corpo sem Órgãos, como improdutivo, sempre fazendo com que seus
gradientes de atração e repulsão produzam a energia residual do Volutas ou o
sujeito formado no fim do processo como resto, sempre renascendo a partir de si
mesmo constantemente sempre do grau=0. O processo é o da constante
transvaloração de crença, nunca estática, sempre criada novamente conforme esta
perde seu teor de propagação e conservação das forças vitais da vontade de
poder.. Aqui, atribuímos o Corpo sem Órgãos como o fundo obscuro do não-saber,
o niilismo extremo que conduz à criação de sentido, valor ou crença orgânica na
vacuidade da mente.
A Fórmula de Zos Vel Thanatos
O fundamento básico de
toda magia é o desejo ou vontade. Associemos o processo da energia de conexão -
libido - como o processo de aspiração a um algo, intenta-se um feitiço ou magia
em vistas de alguma coisa. A energia de conexão opera a síntese da máquina
sujeito com a máquina cosmos, através das diversas outras máquinas utilizadas
na operação, sejam os apetrechos e utensílios para a magia. Como consequência,
parte dessa energia se transforma em Numem, inscrevendo-se como a
"verdadeira vontade", o desejo subconsciente ou vontade divina -
forma de registro da energia pelo método de sigilição. Como resultado, a
energia de inscrição conduz a uma energia residual - Voluptas como o prazer que
se extraí da operação, o resultado da magia ou feitiço.
Necessário é salientar
que, no processo de inscrição e registo, dois caminhos são possíveis: um
primeiro que condiz com uma disjunção exclusiva - neste caso, o feitiço se
restringe ao quadro de possiblidades limitantes (a realidade empírica tal como
ela é, o que resulta na falha do feitiço); de outro, uma disjunção inclusiva -
tornando virtualmente factível qualquer resultado, mesmo o mais absurdo - neste
quadro, deve-se considerar uma relação causal muito mais profunda do que a que
aparenta no campo atual (DELEUZ; GUATTARI, 2010, p. 25).
Em um exemplo extraído da
biografia de Austin Spare, em que quando em um passeio, a pedido de que
demonstrasse seu método mágico, desenhou um sigilo em um papel, apontou para o
céu sem nuvens e disse que começaria a chover, - e de fato, começou a chover
(STEVAUX, 2022, p. 160). Levando isto em conta, tal chuva não é causada por
conta da condensação das moléculas de água tão somente porque uma massa de ar
frio encontrou uma massa de ar quente em circunstâncias previstas - o movimento
do ar, a condensação das moléculas, nada disso é aleatório, mas sim tem sua
causa em um campo virtual que se contrai no espaço – sendo o espaço somente o
grau mais contraído do tempo - a potencialidade de um acontecimento como
hecceidade se efetuar. Foi o desejo sigilizado, comunicado com a ideia de chuva
através do signo do sigilo (este que se comporta como âncora).
The Starlit Mire
Opera-se daí uma
individuação entre uma ideia de chuva, uma ideia especifica, distinta porém
obscura (como visto no post anterior) - pois não se consegue vislumbrar
exatamente qual ideia de chuva é essa por seu constante movimento - que se
individua, ou seja, se atualiza na própria chuva, tendo o sigilo como signo de
comunicação expressiva entre a virtualidade da ideia de chuva e sua atualidade
enquanto chuva. A ideia de chuva se efetua claramente, pois é claro que está
chovendo, contudo, confusamente, pois é confusa a origem dessa chuva - a
relação causal que originou tal chuva.
Referências:
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Felix. O Anti-Édipo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. 1 ed. São Paulo: Editora 34, 2010.
LEE, Matt. “Lembranças de um Feiticeiro”: Notas sobre Deleuze e Guattari, Austin Osman Spare e Feitiçarias Anômalas. In: Arte e Magia do Caos: Obra Reunida de Austin Osman Spare. Org. Rogério Bettoni. Tradução de Rogério Bettoni. Belo Horizonte. 1. ed.: Palimpsestus, 2021.
NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos Póstumos 1884-1885 (Volume V). Tradução de Marco Antônio Casanova. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
SPARE, Austin Osman. O Livro do Prazer. In: Arte e Magia do Caos: Obra Reunida de Austin Osman Spare. Org. Rogério Bettoni. Tradução de Rogério Bettoni. Belo Horizonte. 1. ed.: Palimpsestus, 2021.
STEVAUX, Octavio. Caos: Uma Religião para os Desprovidos de Fé. In: Arte e Magia do Caos: Obra Reunida de Austin Osman Spare. Org. Rogério Bettoni. Belo Horizonte. 1. ed.: Palimpsestus, 2021.
Artes:
Austin Osman Spare
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